terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Que é o amor?


Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. (Milan Kundera)

 


Amar o prazer não é amar

O sofrimento existe para por termo

No que aflora apenas os biltres abraços da mesquinharia

 

O desejo medra o medo

E sucumbe à resistência por zelo

 

Que é o amor?

 

De tempo em tempo

Não sei do que se trata

Pessoas vivem-no?

Ele é coisa dos vivos?

Ele é coisa da alma?

A alma é coisa de quem?

 

Talvez seja possível, no empreendimento do raciocínio, concebê-lo

Sabendo-se o que não poderia jamais ser

Saber-se-ia melhor elucidar o que é isto de ser e não ser

 

Se o amor é grande demais para o raciocínio comum

Talvez devamos simplificar o amor

Ou então tentarmos descrever parte daquilo de que seria feito

Ele parece não se sustentar nas coisas rasteiras deste mundo

Pois é simples, mas também profundo

E seguiu o rasto descaminhado de alguma estrela...

 

Não quero vender paraísos...

Às vezes é o sonho que se desfaz...

Desejos do corpo...

Vazios da alma...

Talvez não fosse sonho...

 

Viver a vida com intensidade...

Dirão os mais otimistas...

Parafrasearia Clóvis Filho...

 

“Faça, nela, somente aquilo que, dizia Nietzsche, der vontade de fazer e refazer infinitas vezes nesse tempo finito em que tudo retorna (diria Kundera), embora nada perdure no instante do retorno, mas que precisa ser este insistir para instituir o eterno retornar”

 

“Deixem minha consciência em paz”

 

Outros diriam...

 

“Que coisa nobre a consciência!

Atormentada por oportunistas, exaure as forças do homem”

 

“O amor endeusa, às vezes

E deixa de ser amor

O amor verdadeiro ama o lixo e ama a flor”

 

Sei que amar é amaro quando do paladar rasteiro

Que causa quizilenta dor

É fogo que queima sem sentir e sem se ver

Tudo quanto se esvai foi de outra matéria que não do amor...

 

O amor não é deste fogo que se apaga

É fogo que se esconde

Para te penetrar promíscuo pelas arestas

E te faz fogo

Então irrompe em fogo com fogo

Que arde violentamente e queima tudo que é feito de prazer

 

Quando só sobram as rugas, soçobra o que não foi fundado no amor

Mas afundou com as volúpias

 

O amor, pois, não pode ser coisa deste mundo

Posto que, quanto mais arde, mais extingue e menos se extingue

Porque não foge e não se desfaz

Sendo feito de dois corpos que ocupam o mesmo espaço

 

Quando parece ausente é porque sempre esteve tão presente que se acomodou

Por ser destas presenças discretas que não são vistas desde o olho educado pela rotina

Havendo-se sempre, mesmo sem uma forma física precisa

Às vezes dinâmico, às vezes inerte, sem ser inepto, porque sempre constante

Ele te vê, ou melhor, te vigia de qualquer lugar porque está em todo lugar e te conhece mais que tu mesmo pensas conhecer

Viu-te nascer e, desde então, te encomendou, de si mesmo, o mais verdadeiro sentimento (talvez o único verdadeiro...)

 

Quando pareceu covarde, foi bem cauteloso

Quando se recolheu no silêncio mais profundo foi o barulho pueril do dia a dia que não o permitiu notar suas notas celestiais

Quando te abandonaste, na verdade, ele estava ali, te espreitando dos lugares mais banais

Como quando choraste pelos rincões da noite

Como quando beijaste aquela foto empoeirada

Como quando viste a flor que rompeu a calçada

 

O amor, enfim, é esta guerra sem causa...

Mas que se mantém firme em proteger o objeto amado

Sem ter um inimigo preciso...

 

E mesmo quando completamente se despedaça, ele sai vencedor...

Porque nada neste mundo é mais nobre e mais forte que Ele: o Amor...


By Prof. Dr. Danillo Macedo




sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Minha leitura da canção "Todo Homem" interpretada por Zeca Veloso


Vou comentar o que entendi desta linda música interpretada por Zeca Veloso e que foi composta por Caetano Emanuel Viana Telles Veloso / Tom Veloso / Moreno Veloso / Zeca Veloso

19.11.2021


Assista ao vídeo e ouça a música primeiro:

https://www.youtube.com/watch?v=yjxriFArvMk


Nenhuma interpretação é “definitiva”. Esta é a “minha interpretação” realizada neste “inédito momento”... 

(Prof. Dr. Danillo Macedo)

danillomacedo@hotmail.com

https://danillomacedo.blogspot.com/


“Todo Homem”


O sol, manhã de flor e sal

E areia no batom


Para mim, neste verso, “ele”, quando eu digo “ele”, refiro-me ao “eu lírico” musical, à “voz” ou às vozes construídas(s) na composição da música, enfim, “ele” está tendo memórias de momentos felizes que, a princípio, a gente não sabe com quem é ou do que, realmente, se trata (esta provável experiência); mas, ao final da música, a gente vê que parece pressupor eventos em “família”; o conceito de “mãe” se distribui em vários sentidos ao longo da canção: “mãe como família”, “mãe como ambiente bucólico”, “mãe como a amada ou o amado” etc. Tanto a ideia de “mãe como família” quanto a de “mãe enquanto ambiente natural/sagrado/bucólico” passam a conotar esta impressão de “aconchego”. Portanto, a “voz da canção” demonstra essa paz, esse prazer, essa satisfação que é alimentada pela “energia da natureza”, ou seja,  sua “mãe”, a mãe do “homem”, dos seres vivos, que é a fonte da vida, da energia que move o mundo, da nossa “verve”, que o faz (o eu da canção) sentir toda essa vida e a agradecer por isto... 


“manhã de flor e sal / areia no batom” quer dizer, na minha opinião, um dia novo que nasce, cheio de vida, da luz do sol, remetendo ao “eu da canção” inebriado na praia com sua amada; a praia é quem deixaria na amada esta “areia no batom”... 



Farol, saudades no varal

Vermelho, azul, marrom



Agora já anoiteceu, outrora era “sol”, agora é “farol”, ou seja, já está “noite” (um movimento de ruptura entre “prazer” e “trabalho”, entre “sonhar” e “viver a realidade”, entre “sentir” e “pensar” etc.)... e, ele (o eu da canção), mais uma vez, com lembranças de tempos bons, sempre remetendo a alguma ideia de “mãe”; no verso anterior, tínhamos uma figura feminina, a mãe, a mulher, sua amada, como a “nova mãe”, ou seja, uma mãe lhe deu a vida, agora, com sua amada, ele dará novas vidas, “filhos”... porque mãe também pode ser a “mãe de seus filhos”, ou seja, “todo homem  precisa de uma mãe” remete ao mito do andrógino (pesquise sobre este mito para que o possa compreender): todo homem precisa de uma mulher/companhia que lhe complete e, juntos, deem continuidade à vida... agora, ele lembra de sua mãe materna, não como a mãe de seus filhos, mas como sua própria mãe mesmo: “saudades do varal” quer dizer aquele tempo bom que sua mãe lavava suas roupas e ele corria no quintal colorido de roupas: “vermelho, azul, marrom” etc. (reitero que esta é minha interpretação...) 



Eu sou cordão umbilical

Pra mim nunca 'tá bom



“eu sou cordão umbilical”, ou seja, agora ele não está falando da mãe de seus filhos, sua amada, nem de sua própria, nem da mãe natureza, agora ele assume o eu lírico da própria figura de uma mãe. A voz da própria mãe (os três tipos de mãe mencionados), sintetizada e dizendo “eu sou cordão umbilical” e “para mim nunca tá bom”, ou seja, mãe enquanto cuidado para sempre... o cordão umbilical representa o “cuidado”, a frase “pra mim nunca tá bom” representa “para sempre”... ou seja, mãe cuida para sempre, alimenta, dá atenção, dá suporte, dá a vida... seja a mãe biológica, seja uma pessoa, homem ou mulher, que tenha este cuidado de “mãe”, seja a natureza, seja Deus, seja uma amada ou um amado que agora será uma “nova mãe” para ele ou para ela... é por isto que se diz “todo homem precisa de uma mãe”... em outros termos, todo ser humano precisa de carinho, de atenção, de amor, de dar sequência a novas vidas, de cuidar de novas vidas... (esta é apenas uma interpretação minha...)





E o sol queimando o meu jornal

Minha voz, minha luz, meu som


Agora, eu acredito que ele esteja rememorando, mais uma vez, momentos em família: amanheceu novamente, ele já não é mais uma criança, mas agora um jovem/adulto: pois o gênero textual “jornal’ remete à leitura e, mais do que isto, a uma leitura mais madura... ele passou da correria entre os varais para o “jornal”... novo dia, agora, rotina (de uma pessoa mais madura) e que, neste instante, está mais envolvido com a música (a mesma música que sempre o envolveu)... esta inferência está presente nos termos “voz, luz e som”. Voz: ele agora é um jovem que sabe o que quer, cantar, se entregar para a música. Luz: razão, maturidade... “Som”: a voz se tornou mais do que ruídos aleatórios, mas, bem trabalhada, se converteu em “música’... 


Todo homem precisa de uma mãe

Todo homem precisa de uma mãe


Aqui o refrão que é o “ápice” de todo este percurso figurativo/metafórico... 


O céu, espuma de maçã

Barriga, dois irmãos


Mais figuras de linguagem para expressar o que, muitas vezes, em uma linguagem literal ou comum, nós não conseguiríamos fazer. Eu diria, ainda, que a língua é sempre “metáfora” ou é sempre um “esforço”, nunca aquilo que ela tenta representar, pois ela é sempre “representação”, por isso, sempre “tentativa” ou “fragmento”, para não dizer “distorção”. Logo, emana sempre metáforas das coisas que estão fora dela. Eu diria, pois, que o que chamamos de “linguagem literal” é senão o esforço extremo de reduzir ao mínimo a imanência metafórica da língua com uma linguagem pretensamente mais “pura”, com termos considerados mais “objetivos”. 

“o céu, espuma de maçã”: é quase uma sinestesia, um jogo com os sentidos físicos: eu vejo o céu como uma espuma de maçã, nublado, informe, aleatório e belo; e esta visão é tão intensa e contemplativa que eu sinto como se estivesse sentindo o “gosto” do céu, logo, é como ver a espuma de maçã, mas é também como “tomar” (beber) esta mesma espuma. 

É um momento de deleite, de contemplação, de celebração (“espumantes”); celebração do mistério do mundo e da vida: “barriga, dois irmãos” (estou prenhe da vida, sou resultado de momentos de intenso regozijo entre duas pessoas e também celebro novas vidas que surgem de mim (“barriga”) e de pessoas a mim próximas (“dois irmãos”).  


O meu cabelo negra lã

Nariz, e rosto, e mãos


A vida vai tomando forma em mim, de mim, através do meu único ser para quem o mundo, todos os dias, toma nova-velha forma. Vou me conhecendo sem jamais haver me conhecido: “o meu cabelo é uma negra lã”, assim vou se adaptando a mim, ao meu corpo efêmero na experiência única da transitoriedade física e, nisto, contemplo, espantado, a beleza das formas e das funções de meu “nariz, e rosto e mãos”. 


O mel, a prata, o ouro e a rã

Cabeça e coração


Aqui temos mais elementos de simbologia da celebração à vida e todo prazer e prosperidade que ela possa oferecer. O mel, símbolo do que há de melhor para se aproveitar, o “sumo” de todo vigor das flores e outras fontes das quais se produzem o mel. A prata, símbolo de conquista, de prosperidade, de experiência de vida etc. O ouro, símbolo maior de riqueza, de excelência etc. A rã representa boa sorte e também elementos que remetem a experiências que já foram citadas. Desta forma, o termo “rã” prova uma ligação com outros elos da música, demonstrando que palavras aparentemente aleatórias, nesta canção, se comunicam, se conectam umas com as outras. A rã, por exemplo, é sinônimo, dentre outras coisas, de “chuva”, de “fertilidade”; já comentei sobre isto: a figura da mãe como fonte da vida (“fertilidade”) e “o céu, espuma de maçã” como símbolo do acolhimento sagrado da “Natureza”. 

Nesta experiência única da vida, somos essencialmente isto e por isto a concebemos e a conduzimos até o último sopro do Universo: “cabeça e coração”, ou seja, somos “razão e emoção”. Às vezes mais emocionais, em alguns momentos mais racionais. De todo modo, precisamos manter um “equilíbrio”. Nem é bom pensar demais, inclusive tentando entender as próprias emoções, tampouco não devemos nos deixar embalar por emoções que podem nos levar a tomar decisões precipitadas. 


E o céu se abre de manhã

Me abrigo em colo, em chão


A canção termina, antes do já citado refrão que nos leva ao seu ápice, com as duas dimensões da existência humana: o ser material e o ser espiritual, o ser definido pela razão e o ser essencialmente experienciação dos sentidos no fragor das emoções. 

“o céu se abre de manhã”: de manhã é quente, é a luz da razão que nos acorda para a realidade do mundo material, para mais uma etapa do ciclo da vida. Mas, mesmo assim, nas entranhas do mundo prático e de aspecto caótico, eu ainda consigo “abrigo” e, mais do que isto, “abrigo em colo”, seja este colo (de “mãe”); seja esta figura materna em termos de acolhimento proporcionado pela “Natureza”, seja de um amado ou de uma amada que, como uma mãe, carrega em si a força de “renovar” todas as circunstâncias e de dar vida e sentimento para as coisas aparentemente rudes, formais, “racionais”, seja esta “mãe” no sentido “literal” ou como metonímia de “família”, seja esta mãe o próprio “eu da canção”, assumindo o lugar daquele que também dá nova vida e novas cores ao seu locus de enunciação, pois este “eu da canção” é “mãe” que é magma de vida (“colo”), mas é também forma material que se consubstancia em um ser concreto uma vez que tem também a habilidade de se manter no “chão”. 


Todo homem precisa de uma mãe

Todo homem precisa de uma mãe

Todo homem precisa de uma mãe

Todo homem precisa de uma mãe



Mais uma vez: “o refrão como “ápice”, como “epifania” de toda esta belíssima canção”. 


By “Danillo Macedo”





 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Se o tempo existe...




MINHA APRESENTAÇÃO / DECLAMAÇÃO NO PROJETO DIA DA POESIA 2021 (TV UFG)

CLICK NO LINK PARA ASSISTIR:


Se o tempo existe...

Há milhares de anos atrás, onde estávamos?

Dormindo?

Se o tempo existe, por mais quanto tempo iremos dormir?

Estamos acordados?
Tudo parece tão real para ser mentira

Todos parecem tão vivos para ter sido apenas sonho

É possível sentir e perceber de modo a não sentir e perceber que tudo que sinto e percebo é apenas sonho

É tudo tão grande para ser tudo tão pequeno

Quando se acorda ou se dorme e se percebe, se é que percebemos...



Estou tão vivo para ter que me preocupar com o modo com que fora e como será...

Alguns escreveram, outros gravaram, quando não tinha isto de computador, as rochas riscaram...

No mesmo gesto que se fazia quando suas vidas é que estavam sendo riscadas...

Sonharam?

Estavam tão vivos quanto eu e você ou será que nada existe e inventamos o tempo?

Voltaremos?

Existíamos?

Existiremos?

Foi tudo tão real que parecia que o tempo não existia e só estávamos ali presos num sonho do qual tentamos acordar quanto mais pesados ficam os olhos e nos afundam para as aparências físicas e efêmeras

Quando morremos, todos morrem conosco, tudo se desfaz, porque já não somos e nada nem ninguém permanece, para nós, sendo...

Então cerramos os olhos e, estarrecidos, vemos que sonhamos, se é que vemos...

Mas, se o tempo não existe e realmente vemos, a sensação que mais se entranha naquilo que sequer seja corpo é de que foi tudo um grande sonho

Se é que se sonha nisto que sequer seja corpo, mas é éter, senão coisa de que palavras não falam, tentam reproduzir isto que sequer seja feito de coisa do sonho que se sonhou e dentro do qual, apenas dentro do qual, se podia criar o mundo e a própria coisa sonhada com palavras disto que se chama “humano”

Enquanto se sonhava parecia tudo tão verdadeiro...

Ninguém percebia que estava rodando o moinho...

Vivemos?

Se o tempo não existe então tudo se repete e a gente nasce e desnace para sempre, no disco do Universo que nunca para de soar...

E o futuro já passou, porque o Criador já propôs o ritmo em função do qual já apertou a tecla “tocar”

Voltaremos?

Parecia tudo tão real que minha voz não queria pronunciar...

Só queria sentir o mundo que nunca conheceu, mas que voltaria e continuaria a explorar...

Se o tempo existe não seria possível dar termo

Ou só seria possível dar termo justamente porque o tempo exista...

Ou, ainda, isto de dar termo é justamente o que permite ao tempo existir nisto de aparentemente existir...

Mas, quem disse que o tempo físico é real?

Para tanto, é preciso conhecer o que é físico e o que vem a ser o que se diz ser real...

É preciso, ainda, conhecer o próprio atributo do que chamamos “conhecer”...

O que é real para os conceitos físicos?

Se o tempo não existe então estamos presos em nossos pensamentos ou não são nossos os pensamentos...

Enquanto se sonhava parecia tudo tão real...

E tudo o que eu via e presumia conhecer era apenas que ninguém percebia que estava rodando, inerte, o já esmaecido moinho...


by Danillo Macedo





terça-feira, 18 de maio de 2021

Homero narrando futebol seria uma tragédia

 Em 17/06/1954, Carlos Drummond de Andrade iniciava sua crônica no Correio da Manhã assim:


Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Torres, Lamadrid e Arellano quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal…


Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero...


Felizmente, ninguém atendeu-lhe o pedido. 



REFERÊNCIA:


ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.p. 1090.




sábado, 3 de abril de 2021

A Super Funai

 

MINHA LEITURA



XVII

 

A Super Funai

 

Primeiro, vamos matar todo mundo que se recusar a seguir nosso propósito: encontrar ouro, plantar soja, vender carne para os chineses. Depois, daqui a centenas de anos, vamos inserir quem tiver restado deste povo à nossa cultura, mas, vamos fazer isso à força: se não for na base do chicote, vai ser na base da nossa lei. A lei é para ser seguida, vai ter polícia para isso. A lei do convencimento não existe, é porrada que convence. Terras para eles? Só para se distraírem mesmo, a maioria das terras vamos tomar tudo. A gente quer plantar, mas não para comer, mas para estocar e vender para quem tem dinheiro. Quem tá com fome que trabalhe, se não achar trabalho que vá procurar comida no lixo. E, se precisar, a gente vende até para fora, quem pagar melhor a gente vende, pode ser até para o Estado Islâmico. Quando a gente mesmo tiver fome, a gente manda fazer ou manda trazer, dinheiro não é problema, dinheiro é mato, o que tá faltando é liguinha para amarrar.

Esse povo tem que trabalhar para nós mesmo, fica ai se pintando, fazendo dancinha ao redor da fogueira, para que isso? Cadê a roupa desse povo? Mas, não tem nada não, como eu já falei, depois a gente põe esse povo num canto qualquer, numa terra qualquer, desde que não atrapalhe a gente. Para um tal de Direitos Humanos não ficar enchendo o nosso saco, a gente manda as escolas falarem desse povo, só para constar mesmo, só para pagar nossa dívida genocida. Sabe como é, né? “Valorizar a memória”. No presente, a gente toca o terror, depois a gente cria essa onda de “valorizar a memória”. E que todo mundo entenda que isso ficou no passado, estaremos perdoados!

E para que serve a Funai? Ah, tá, vou te responder. Inventaram a Funai pelo mesmo motivo que inventaram call centers: “não deixa esse povo chegar perto de mim não, resolve com esses merdas ai!” Vou explicar melhor. A Funai foi inventada para não termos que matar mais indígenas, mas sim mantê-los em parques temáticos e peladões nos livros de História.

Quer saber? Tinha que acabar com isso. Isso mesmo, o indígena somos eu e você, somos todos nativos da Terra. Se é para terem a cultura e a tradição deles preservadas, então os deixemos lá na floresta, em paz, com suas próprias leis, sem nossa interferência e eles sem interferir no nosso modo de viver. Estou sendo agressivo de mais? Talvez até anti-humanista ou algo assim. Mas, opinião é para ser dada, e nenhuma é definitiva. O que creio é que tinha que acabar com isso. Por outro lado, se é para inseri-los, então vamos inseri-los. Mas, de verdade, como qualquer outra raça ou etnia. Que estudem, que façam faculdade, que trabalhem e este passará a ser o “indígena moderno”. O indígena bruto deixa para o Ubirajara.

A Funai tem a função de preservar o território indígena, assim como o de fomentar a preservação de sua tradição e de sua cultura. História para boi dormir! A Funai é só mais um órgão corrupto dentre tantos outros que dissimulam a verdade, que arrastam seus grandes corpos pesados em direção a nada, esmagando nossas reais necessidades. Quem é que está falando aqui? Ei, não sou dono da verdade! É minha opinião... A Funai é o filho sínico do pai corrupto: o genocida SPI. Te machuquei? Bom, posso estar errado... Só estou tentando ver as coisas desde os seus extremos... Demos direitos aos indígenas para gozarmos o prazer de não cumprirmos nenhum deles: somos uma sociedade, além de facínora, hipócrita!

A Funai também tem o papel de promover, aos indígenas (sendo a Funai idealizada e controlada por pessoas que não são indígenas!), a chamada “educação indígena”. O que dá um grande nó em minha cabeça: “educação” e “indígena”! A educação tem uma história totalmente indiferente à cultura indígena. Nem mesmo o termo “indígena” tem origem “indígena”! Queremos ensinar o que, exatamente, aos indígenas? Como exercerem profissões pueris, mal remuneradas, exaustivas, subservientes? Ou será que são as contas de base 10? Ah, sim, talvez sejam histórias de homens brancos que se auto declararam grandes heróis. Francamente!

Não sei, com exatidão, o que seria o mais correto. Mas, tenho certeza de que muita coisa não está certa! Ah, isto eu sei, isto todo mundo sabe...

Em qualquer processo, enfim, haverá falhas, mesmo que quase invisíveis. Há órgãos como a Funai, para a proteção dos índios, e o Ibama, para a proteção do meio ambiente; porém, de modo geral, os agentes que atuam em nome dessas instituições acabam por ultrapassar a margem da preservação cultural e não preservam nada, apenas seguem protocolos criados por pessoas não indígenas para insinuar ao mundo que algo está sendo feito para proteger os “bichinhos selvagens”.

Um exemplo de falta de preparo é a alfabetização mal planejada de crianças indígenas (não que isso signifique que toda intervenção e todo contato com a cultura indígena seja mal planejada e ruim), fazendo-os esquecer sua própria língua, obliterando a plenitude da cultura que, pela língua e produzindo língua, se recuperaria, se fortificaria.

São muitos os paradoxos, mas o que me dá náuseas mesmo são as contradições. Muitos valores estão em jogo; há discursos que operam na criação de valores e que dirimem muitos outros. Contudo, não são só discursos que distorcem a realidade; são, principalmente, as condições que garantem a produção deste tipo de discurso: condições criadas, modificadas, adulteradas, provocadas... E... enfim, mais uma vez: muitas reticências...


bY DANILLO MACEDO







Indígenas ou não, votemos?

 

MINHA LEITURA


CRÔNICA XI


Indígenas ou não, votemos?

 

O indígena pode ou não votar? Ele pode ou não acumular bens? Pode ou não ser ele mesmo? Quais suas prerrogativas? Não há suposto privilégio que compense o genocídio, que compense a violação de uma cultura milenar, violação irreparável. Isto é verdade? Mas, assim como muitos povos antigos já se extinguiram e tornaram-se novos povos, considerados, hoje, “civilizados”, como é o caso dos francos, dos godos, dos hunos, etc., os povos indígenas não deveriam fazer o mesmo? É confortável se acomodar aos cuidados, não tem bem cuidados, da Funai? Temos condições e o direito de fazer tão complexos julgamentos?

São muitas perguntas, quase nenhuma resposta definitiva. Segundo a legislação própria para as questões indígenas, eles não podem alienar bens, pertencentes à sua terra e à sua cultura, para “enriquecer”, mas que sejam utilizados tão somente para a sua subsistência (quer dizer que “não indígenas” é quem determina o que “indígenas” devem ou não devem fazer?). Se ele pode ou não ser ele mesmo é uma questão filosófica, política, religiosa, cultural, muito complexa, historicamente incompleta, que não se impõe de forma definitiva.

Não acho que haja grandes “privilégios” aos indígenas distanciados da sociedade que se considera “superior” e “normal”, vejo mais desprezos e estigmas. De todo modo, como eu disse, milhares de povos antigos, como os visigodos que dominaram a Espanha, os Germânicos que o fizeram à Alemanha, “evoluíram” na direção de melhores condições de habitação, locomoção, comunicação, produção de bens de consumo e entretenimento etc. É claro que, inevitavelmente, esta reflexão nos leva a nos perguntar: por que os povos indígenas não caminharam na mesma direção de um “desenvolvimento” bélico, político, tecnológico, etc.? Cabe a nós julgarmos isto? Que prevaleça, ao menos, entre o sonho, a realidade e a utopia, a convivência respeitosa.

Deixo, por fim, a tentativa de responder a uma última questão: diante de todas as adversidades, o indígena ainda é obrigado a “votar”? Não, o nativo, se ele fizer prevalecer a cultura de sua comunidade, alheia a questões políticas europeizadas, ele não é obrigado a votar. Pode até se aposentar com auxílio da Funai, mas obrigado a votar ele não deve e não pode ser. Voltemos, pois, abrindo um parêntese, ao questionamento referente a possíveis “prerrogativas” e, poderíamos concluir que se houvesse alguma, esta, então, seria uma delas: não ser obrigado a “votar” em nenhum dos parasitas encrustados no poder desde o Brasil Colônia e o Brasil Império.

A população brasileira, e um milhão de vezes mais o indígena, não se sente parte das decisões políticas, pois está historicamente condicionada a aceitar a ideia (e esta aceitação faz desta “ideia” um “fato”) de que somente se faz partícipe da vida pública na ocasião em que seria obrigada a manifestar seu “voto”. É penoso pensar assim, mas após o exercício civil do voto, voltamos a ser apenas uma engrenagem, no sentido lato do termo: aquela que pode ser trocada, e que pode ser jogada fora.

Este estado de coisas, porém, deveria mudar. Pois nem a Natureza e tampouco este suporte social que sustenta nossas relações, irão suportar: a indiferença, as intolerâncias, a hipocrisia não salgarão para sempre a podridão das ações medíocres dos homens, entregues a atos corruptos: fascistas, genocidas, pervertidos, etc., que degeneram a máquina invisível, como é mesmo de sua natureza degenerativa, criada por várias personalidades dúbias ao longo da História. Uma sociedade imersa em tramas políticas que através das quais se visa apenas o benefício próprio: vale tudo para silenciar os que lhes incomodam, enquanto chafurdam em suas falcatruas e nas mais diversas atrocidades.

É preciso um modelo muito mais sustentável, sem a obsessão por lucro, mas que devolva à Terra seus recursos. Os indígenas ainda praticam a agricultura de subsistência, é por isso que eles se recusaram e ainda se recusam a viver essa quimera ocidental de “civilidade”. Ambos os modos de vida, ressalvados seus paradoxos, são válidos. Os indígenas podem aprender com nossa tecnologia, mas também deveríamos aprender com sua austeridade bucólica. Não trata-se de um melhor que outro, trata-se de erradicar a corrupção, a hipocrisia e inserir o indígena no universo intelectual, econômico, político, sem coerção e sem mais genocídio (e esta inserção na cultura, na intelectualidade, deveria ser um exercício mútuo).

Talvez seja uma nova utopia: que os meios de produção e de consumo fossem do acesso de todos, oriundos das mais diversas culturas. Serei tolo, serei um patético comunista: é o que dizem sempre que alguém esboça preocupação em melhorar a vida do outro (que ele estude, que ele trabalhe!). Sim, que ele estude, que ele trabalhe, que ele adquira conhecimento útil à sua ascensão como pessoa, que ele receba um salário digno, tudo isto é verdade, que tudo isto saia de toda nossa teoria falaciosa e que o meio em que ele (o indígena, homem ou mulher, assim como cada um de nós...) vive dê a ele (ou a ela) condições de ir e vir, de usufruir de lazer e cultura e que, por fim, sejamos tratados como seres humanos: nós sentimos, nós pensamos, nós sonhamos; não somos apenas uma engrenagem desprezível, usada para fazer número em dia de voto (ou pelo menos não deveríamos ser!).

Falta “vontade política”, não é verdade? O mundo começa a melhorar quando mudamos nosso mundo, quando “arrumamos nosso quarto”. Nativos ou europeizados. Quanto á nós, votemos, portanto? Para quê? E quem somos nós? Somos todos nativos da mesma terra e itinerantes da mesma viagem que nos levará de volta ao pó. Decidiremos quem teremos sido, se cuidamos bem ou não do lugar que nos acolheu, ou se tudo o que fizemos foi ultrajar nossa própria e insubstituível história.

Sim, votemos, nunca vendamos nosso voto, é repulsivo. Já não temos os melhores candidatos, ainda haveremos de prostituir a nossa ínfima e duvidosa manifestação eletrônica de vontade? Enfim, votemos nos menos piores, naqueles que não são oriundos de famílias que estão no poder desde a Era Paleolítica. Ajudemos uns aos outros, aos nossos vizinhos, aos nossos irmãos indígenas; cuidemos do lugar onde vivemos, tenhamos esperança em uma sociedade mais justa e que nossos descendentes possam viver em um lugar onde prevaleça a paz (que tenhamos descendentes!).


By Danillo Macedo




quinta-feira, 1 de abril de 2021

Por que os bichos não falam mais - MINHA LEITURA


MINHA LEITURA



V 

                                                   Por que os bichos não falam mais


Antigamente, havia muita fartura, os povos nativos viviam bem do que plantavam, pescavam e caçavam. Antes eram nômades, depois é que aprenderam a plantar e passaram a se estabelecer por mais tempo em determinadas regiões, geralmente ribeirinhas. Era uma vida simples, respeitavam os ritos de preparar a terra, plantar, cuidar e depois colher o que plantavam. Quanto ao que pescavam e caçavam, era ainda mais trivial, pois todos os bichos falavam a mesma língua que os homens. Assim, quando um guerreiro caçador (o guerreiro Caiapó, por exemplo) queria apanhar algum bicho para a sua próxima refeição, para acompanhar as iguarias feitas da mandioca, bastava ele falar algo assim:


— Capivara, minha amiguinha, vem aqui, tenho uma história para te contar, vem.


 A Capivara respondia:


— O que você quer, seu Caiapó mateiro? Deixa eu seguir meu caminho. Vai plantar mandioca, vai!


E o guerreiro insistia, ardilosamente:


— Para com isso, Capivarinha querida, está achando que vou te comer, é? Eu só quero um conselho, na verdade, uma informaçãozinha. Você conhece a mata muito melhor do que eu e estou perdido aqui. E, além do mais, nem estou com fome, já comi um bocado de cuscuz hoje. Ai, ai, Capivara, me ajuda, por favor! Vem que vou te dar umas plantinhas top para você experimentar, Capivarinha linda, meu amor.


A Capivara acreditava, finalmente, no guerreiro Caiapó e, então, ia até ele, perguntava a ele o que era, então, que ele queria e “ZAP!”, ele dava um rápido golpe de borduna na cabeçona dela e, pronto, mais proteína para ele apreciar com os derivados da macaxeira. 


Faziam isto, todos os indígenas da Terra, Caiapós ou não, antes mesmo do contato com o homem branco, e faziam-no com todo tipo de animal, que consideravam bons para se comer. Até que um dia, o Macaco, o bicho mais velhaco de todos, afastou-se totalmente dos homens, não falava mais uma só palavra com eles. E, assim, foi instruindo a todos os outros animais, um por um, a fazerem o mesmo.


 — Ei, Cutia, vou te contar e você conta também para todos os outros animais que você conhecer, tá bom? Não falem, nunca mais, com os homens! Eles falam com a gente para depois nos apanhar e nos fritar ou assar e a gente vai parar num prato Master Chef acompanhando de cuscuz e cauim.


Esta estratégia do Macaco, entre idas e vindas, de galho em galho, falando, falando, com tudo quanto é bicho, por fim, deu certo e, até hoje, nenhum animal fala a língua dos homens mais. Ao final, os animais descobriram que os homens se comunicavam com eles para dominá-los; o que persuadia mais dominava o mais frágil intelectualmente ou o que tinha alguma fraqueza da qual o homem se aproveitava: como a inveja, a ambição, a ira, a ganância, a preguiça, a gula, entre outras vicissitudes.

 BY DANILLO MACEDO




segunda-feira, 29 de março de 2021

Crônica de uma indiazinha

 

MINHA LEITURA





XIX



Crônica de uma indiazinha



A pequena caiapó estava animada para conhecer uma das festas mais populares e tradicionais do Estado de Goiás, a Procissão do Fogaréu, realizada todos os anos na Cidade de Goiás, desde 1745, quando a cidade era ainda uma vila, a Vila Boa de Goiás. Quem não tem o hábito de participar da mesma, porém já ouviu falar pela televisão, revive, em partes, cada uma das etapas desta festa. Mais uma vez, os conflitos de cultura e identidade da pequenina caiapó: ela admirava estes tipos de festa, no entanto, ficava pensando em como seria reverenciar seus “santos” caiapós. 

Para ela, toda festa religiosa cristã parecia ser a comemoração de alguma coisa; contudo, o que, de fato, representaria aquela “comemoração”? Era o ano de 1783, estava à companhia da mucama que a tinha como sua própria filha. Caminhavam pelas ruas tortuosas e íngremes da futura capital do embrionário estado goiano, feitas de pedras “ladrilhadas” por escravos negros e indígenas. Por elas, iam centenas de Farricocos indumentados de túnicas: negras, brancas, azuis, vermelhas, representando os soldados romanos, herança de uma Europa medieva. 

Esta festa representa a prisão de Cristo, o qual seria conduzido pelos soldados romanos até o que entendiam como sendo o seu “julgamento” e cuja sentença, todos nós já sabemos, seria a crucificação. É dada ênfase à última ceia, já dispersa, aos verdugos que açoitaram Cristo e à sua “paixão”: a “paixão de Cristo”. Paixão que quer dizer sofrer, e Jesus sofreu pelos pecadores do mundo, no lugar deles, como holocausto vivo. Todo mundo conhece a essência desta história. Não obstante, também os amou; e eu atreveria um paralelo com o que diz Camões: “amor é fogo que arde sem se ver”, porque a paixão sofre, mas o amor suporta todo tipo de sofrimento e, voltando aos escritos sagrados da Bíblia, é como o que o Coríntios bíblico também sugere: “o amor tudo sofre” (mas, suporta este sofrimento). 

Jesus, pois, sofreu (a sua “paixão”); quase desistiu no Jardim do Getsêmani, ao sopé do Monte das Oliveiras, em Jerusalém, quando disse “pai afasta de mim este cálice”, momento cuja angústia lhe foi tão causticante que, segundo o Evangelho de Lucas: “seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até ao chão”. Porém, ele também amou o mundo e ao Pai, quando concluiu: “mas que seja feita a tua vontade” (amou quando decidiu que suportaria todo tipo de sofrimento). Sofreu e amou mais do que a própria dor: ao Pai celestial e aos homens, o que incluía os verdugos que o dilaceraram na cruz do monte Calvário. 

A indiazinha era uma verdadeira Alice ou um Pequeno Príncipe perscrutando o mundo e sondando seu próprio ser. Ela sentia vibrar uma energia metafísica. Começou a represar na garganta um choro de contrição profunda quando viu alguns penitentes flagelarem suas próprias costas com látegos, chicotes de corda ou couro; ritual que decidiram executar paralelamente à procissão. Eram mais comuns os chicotes feitos de corda com nós cegos nas pontas. O sangue escorria pelas costas dos flagelados enquanto as lágrimas interiores da pequena caiapó começavam a sair das janelinhas de seus negros olhos. 

Uma confusão de imagens e histórias vieram-lhe à cabeça: ela se lembrava de histórias contadas ao redor da fogueira e de coisas que ela própria via em sua aldeia, quando não estava em sua temporada à antiga Vila Boa de Goiás que, à sua época, já havia se tornado (desde o ano de 1748) uma capitania, a “Capitania de Goiás”. Indígenas e escravos também eram igualmente açoitados, contudo não havia neles “pecados” que justificassem os açoites; quando viu a imagem de Jesus carregando aquela cruz pesada, em outro momento da procissão, estampada num estandarte de linho, carregado por um fiel à parte, lembrou-se de que guerreiros do seu povo faziam coisas malucas semelhantes como enfiarem a mão em caixas cheias de marimbondos para se “fortalecerem”, acreditavam que com isso estavam se preparando para a luta contra seus inimigos; também recordara-se daqueles festivais em que muitos carregavam gigantescas toras de madeira, inclusive mulheres, para detido entretenimento, o qual também sustinha um viés bélico. Lembrara-se, ainda, que indígenas eram obrigados a carregar pedras e pedras, assim como vigas pesadas nas construções e nenhum deles o fazia para expiar alguém de alguma condenação. Quando cresceu e pôde amadurecer seus pensamentos, também foi capaz de se dar conta que muitos de seus parentes foram escravizados, como faziam com os negros trazidos à força da África, e eles só carregavam aquelas pedras pesadas para não morrerem à míngua, muito embora muitos tinham, exatamente, este destino. 

Também soube, anos mais tarde, que o Senhor Jesus, de verdade, há muitos séculos atrás, era homem e ao mesmo tempo Deus, segundo as concepções cristãs. E que se fez homem para sofrer pelos homens que eram apenas homens e também pecadores, para que Deus-Pai perdoasse-lhes os pecados, inclusive as atrocidades contra escravos e indígenas. Já o autoflagelo era uma tradição muito antiga, mas era praticada por poucos, pois o padre da capitania havia dito aos fieis que o Evangelho de Cristo já não via aquilo como algo útil, que o senhor Jesus já havia sofrido o bastante por todos eles, no lugar de todos eles, como eram imolados os cordeiros na época de Abraão; que aquilo, feito em público, o Evangelho chamava de “hipocrisia”.  A indiazinha caiapó, no entanto, começou a perceber, no seu pensamentinho de criança, que talvez ainda fizesse algum sentido se flagelar, “vai que Jesus não tinha sofrido o suficiente para o pai dele, o Deus de tudo, perdoar tanta maldade realizada pelos homens”. 

Fé? Também ouviu sobre esta palavra. O que haveria de ser a “fé”? Sabia que era algo parecido com o que significava esperança, que é quando a gente espera por alguma coisa muito boa que ainda não chegou, mas que vai chegar! Como aquilo que diziam que dela viria: a paz entre seu povo e o homem branco. Naquela noite, Jesus lhe apareceu em sonhos, disse a ela que não se preocupasse com a mistura das raças, que tudo tinha um propósito, que ela viveria à sombra da cruz e à sombra da lança, as quais, juntas, formariam a sua própria sombra. Acordou estupefata, pediu à sua mucama para levá-la à aldeia Maria I, onde estavam alguns dos seus parentes, pois queria comer beiju e tomar banho em uma das cachoeiras próximas. Ela tinha esse direito, afinal, tinha o sobrenome do governador: ela era Damiana da Cunha. 


By Danillo Macedo


Estou escrevendo uma coletânea de crônicas... 





quinta-feira, 25 de março de 2021

Goyania

 

XIII

 

Goyania

 

Tudo começou em São José de Mossâmedes, quando Goiás era ainda Capitania de um Brasil Colônia, em 1755. O arraial de Mossâmades havia sido construído na tentativa de acolher indígenas “pacificados”, dentre eles: acroás, naundos, javaés, e caiapós. Esta última etnia: a mais polêmica e motivadora de uma grande história, da personagem mítica Damiana da Cunha: mulher, indígena, guerreira, que viveu entre 1779 e 1831.

Milhares e milhares de anos de uma ação realizada por constantes e lenientes pinceladas de sedimentos rochosos, acumulados pela destreza da chuva e do vento, formaram um monólito, cujo peso fora estimado em sessenta toneladas, sustentado por duas pedras infinitamente menores, em uma região montanhosa da cidade supracitada. A “maestria” de dois acéfalos anônimos, denominados apenas como “dois estudantes” (imagine só, você, se eles não estudassem!), no ano de 1965, usando um “macaco hidráulico”, conseguiram realizar a façanha, a troco de nada, de destruírem este monumento milenar! O turismo da cidade foi minguado, milhares de empregos foram destroçados pelos dois idiotas. Isto é, realmente, muito lamentável.

O fato é que, ainda no século XVIII, antes da capital ser transferida da Cidade de Goiás para a recém cidade, planejada, Goiânia, esta pedra havia sido batizada de “Pedra Goiana” ou “Pedra Goyania”, a qual recebeu uma placa em meados do ano de 1915, e ficou também conhecida como a “Pedra da Balança”.

Algumas fontes dizem que “Goiânia”, antes grafada com “y”, “Goyania”, derivaria do Tupi-Guarani “Guyanna” que quer dizer “terra de muitas águas”. Porém, não há um consenso; há quem diga que, na verdade, o topônimo é oriundo de “Goyana”, que uns dizem significar “gente estimada”, outros “mistura”, “parente” e até mesmo “ancoradouro”. Não importa, a grande questão é que houve, no Arraial ou Acampamento (hoje, cidade goiana) de Mossâmedes, esta pedra misteriosa, que foi alcunhada de Goyania.

Em 1896, o baiano Manuel Lopes de Carvalho Ramos publica, na cidade do Porto, em Portugal, uma epopeia para o estado de Goiás (ele também residia no estado goiano, mais precisamente, em Caiapônia), e seu título é justamente “Goyania”; seria uma alusão à “Pedra Goyania”? De todo modo, uma referência não à cidade de Goiânia (que ainda não existia), mas a todo o território de Goiás, ou seja, como mencionado acima, a “terra de muitas águas”. É curioso observar que, das poucas tiragens sobreviventes deste livro, uma delas estaria, segundo algumas fontes, supostamente, enterrada em algum ponto da Praça Cívica, junto a outros objetos ali enterrados na inauguração de Goiânia, embaixo da chamada “pedra fundamental” da cidade.






Goiânia foi inaugurada, tecnicamente, em meados de outubro de 1933, mas só foi nomeada, oficialmente, por decreto, no ano de 1935, após um controverso concurso para escolha de seu nome. À época, havia na Cidade de Goiás, onde se concentrava a maior parte da população do estado goiano, um jornal impresso chamado “O Social da Cidade de Goiás”; a equipe editorial deste jornal lançou, pois, um concurso intitulado “Como se deve chamar a Nova Capital?”.

A primeira sugestão veio de um intelectual da época chamado “Léo Lynce” que sugeriu, em homenagem tanto ao fundador da cidade, Pedro Ludovico Teixeira, quanto aos outros “Pedros” da História do Brasil, o nome que ele julgava “fácil” e “suave”: “Petrônia”. A outra sugestão, que deve ser tomada em conta, foi o nome que hoje leva a cidade, “Goyania”, feita na mesma edição da sugestão de Léo Lynce, pelo professor do Colégio Lyceu da Cidade de Goiás, Caramuru Silva do Brasil. Este dizia que o nome proposto tinha grafia, história e significado suficientes para representar a nova capital, como prolongamento da histórica Vila Boa e representaria, de forma ideal, a glória da origem de todos os goianos.

Provavelmente, Pedro Ludovico Teixeira não encabeçou o concurso (de modo algum), de iniciativa do referido jornal. Pois, quem ganhou o concurso, vitória anunciada em 26 de outubro de 1933, foi Léo Lynce, com o que ele chamava de lindo nome “Petrônia”; nome que soaria bem, ao seu modo de compreender, mesmo a quem fosse “inimigo de todos os Pedros”. Pedro Ludovico, por sua vez, ignorou o resultado do concurso promovido pelo jornal e, por meio de um decreto que “batizava” a já estruturada cidade, decreto de 1935, nomeou a nova capital dando a ela o nome com o qual se simpatizou: “Goyania”. O então governador do estado de Goiás determinou que o aniversário da nova cidade se realizasse aos 24 de outubro de todos os anos que se seguiriam. Não se sabe ao certo o motivo deste dia exato. Sabe-se que ele fazia aniversário aos 23 de outubro e não queria que houvesse coincidência de comemorações; também não via nada atraente em ter um bairro com seu nome, o que aconteceu apenas após sua morte, com o Setor Pedro Ludovico que, junto aos setores Oeste, Norte Ferroviário, Centro e Campinas, é um dos mais antigos da cidade.

Assim, portanto, surgiu o topônimo “Goyania”, que depois passou a ser grafado “Goiânia” (questões de atualização ortográfica da Língua Portuguesa). De pedra a poema-livro e a concurso controverso, Goyania recebera apenas dois votos, um do próprio Caramuru e outro de uma senhora chamada Zanira Campos Rios. Na verdade, sabemos que, “na prática”, foram “três votos”, um deles, como vimos, determinante: aquele que foi resultado da apreciação do governador do estado de Goiás, o excelentíssimo Pedro Ludovico Teixeira; muito provavelmente, ele tinha um exemplar do livro de Manuel Lopes de Carvalho Ramos (pai dos escritores goianos Vitor e Hugo de Carvalho Ramos) e também conhecia a tal “Pedra da Balança” (a “Pedra Goyania”); se isto, que afirmei por último, não for verdade, não haveria rumores do poema épico estar, até hoje, enterrado embaixo da pedra fundamental, concordam comigo? (coisa, naturalmente, do então austero e excêntrico governador do nosso estado).


Prof. Dr. Danillo Macedo










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