segunda-feira, 23 de março de 2020

Democracia dos vivos na sociedade dos mortos: o Céu é uma porta que nunca se fecha...



MINHA LEITURA:


 

“Porque o vento e o oceano são as únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da terra quando ainda ela se chamava o caos. Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer” (Alexandre Herculano)



Democracia (o rótulo em frascos suntuosos)...
Utopia, mafiocracia, barbárie, demonstrações funestas de imbecilidade...
Túmulos silenciados, vozes distorcidas: sobrevivemos!
Alimentamo-nos da luz da palavra diáfana: sobrevivemos!

O medo se impõe sobre a matéria,
mas o espírito resiste às coisas que o tempo reclama,
o tempo do relógio.
O tempo é um lodo que afunda, mas não se afunda.
Nada o resiste, nada é imune...
A todos insiste em devorar...

Cinismo: poder.
Poder: humanoides esquizofrênicos...
Todos miseráveis, de tudo, de toda merda que existe para serem menos patéticos...
Fanatismo: angústia...
Todos vão perseguindo algo que lhes faça menos hipócritas.
Menos robôs, menos bonecos do sistema-mundo criado pelas pessoas mesmas do mundo...

E vão se afundando mais, nos brinquedos que criaram, movidos pelo sangue dos outros...

Como um cachorro que achou um bocado de carne e, mesmo sem ser perito em nadar, pulou, sem pestanejar, num rio de forte correnteza, atraído pelo próprio reflexo que projetava um cão e um pedaço de carne “maiores”...

Como eu dissera, hipócritas, robôs de regimes imperfeitos, de preceitos sem nexo...

Correntes: prendem um homem.
Mil correntes: prendem mil homens.
Ideias: prendem todos os homens sem uso de correntes.
Ideias: libertam homens das correntes de ferro e das suas próprias convicções.
Ideias criam-nas, a elas mesmas, mas também se projetam nas coisas que elas acreditam existir conforme ela as concebe.

Ideias criam até o que pensamos ser: somos a concepção que temos de nós mesmos?
Podemos escolher ser o que somos?

Somos o que dizem sermos ou o que achamos ser sem precisar de nossa matéria para existirmos nelas, nas ideias fora desta matéria que achamos estar fora de nossas ideias?

Há tantas grades quanto há culpa.
Há tanta fome quanto há alguém desperdiçando comida protegida por muros e grades.
Há tanto sangue porque há armas de todos os tipos (no mundo real e no mundo fictício...)
Há tanta arma porque tem tanta gente com medo, escondida atrás daquelas enormes grades atrás das quais escondem comida, joias, dinheiro que não sabem mais com o que gastar, com quem gastar, onde, como, quando e, porra (!), morrem e os filhos usam para se drogarem depois do funeral pomposo.

 muro-ESPANHA-MARROCOS-cEUTA-MELILLA1

Há tanta arma com gente que se armou pelo medo, mas inerme da coragem, não se armou, se curvou da arma que é o próprio medo: uma arma também é o medo: a subserviência psicofisiológica...

 

O medo que se impõe sobre a matéria dos homens, sobre as coisas dos homens que se materializaram nas coisas que eles aprenderam a amar: mais que aos outros homens iguais a eles, mais que a própria família...

Os inimigos são criados pelas ideias...
Os inimigos criados pelas ideias criam outras ideias nas pessoas cujas ideias criadas criaram outros inimigos...

mirror effect...

Inimigos criados por ideais presas em pessoas criam pessoas fora das ideias presas...
Estas pessoas matam outras pessoas como se fossem seus inimigos ou suas ideias que se tornaram suas inimigas, suas perseguições íntimas...
Mesmo sem nunca terem visto os inimigos que suas ideias criaram...
Mesmo que suas perseguições fossem criadas por suas ideias...

Matam seus semelhantes, matam seus próprios espelhos...

genocide effect...

 

Quanto mais matam, menos se veem neles, e, não se vendo, menos percebem que matam a si mesmos e se tornam sombras, fantasmas, a troco de nada: matéria, pó, sombra, fumaça.

society of empty bodies guided by shadows...

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Os homens se perderam nas coisas, se afundaram na própria mediocridade.
Seguiram outros homens medíocres que se impuseram como os melhores do mundo.
A meritocracia serve a estes homens “perfeitos”.
Mas, estes homens "perfeitos" matam tantos outros homens que fica fácil para eles se autodeclararem superiores sobre um exército de ossos: sobre o fedor de peles e vísceras queimadas ascendem seus brasões ilusórios...
Ostentam suas medalhas, onde já nem há mais olhos...
Seus prêmios mundanos, levianos, entorpecidos pelo desejo de serem mais do que nunca deixarão de ser: lixo orgânico...

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Levam-nas ao túmulo, junto com sua meritocracia genocida...
Vão para outro plano, junto com seu pacto com a catástrofe...
Todo homem recebe a dádiva divina de passar uma temporada na Terra...
Até o feto mal formado no ventre de uma mãe...

Todos juntos, não veem medalhas, mas outras almas idênticas às suas e ficam perplexos.
Alguns não creem que a igualdade no plano espiritual é plena ou quase plena...
Não há uniformes, hierarquias, protocolos, processos, toda esta merda criada pelos programadores e programados do Sistema...

Modo sistémico de juntar as partes dispersas da própria bestialidade...

Ratos que creem ter mais valor do que a própria vermidez...
São de tudo: juízes arrogantes, prefeitos corruptos, advogados confusos...
Artistas soberbos, governantes prepotentes, policiais obtusos ...

Super-heróis da Sociedade Morta, representada pela roubocracia: os Homem-Merda
Representam seus corpos vivos sobre uma sociedade que “sobrevive”

Reinam sobre cadáveres:

Democracia dos vivos na sociedade dos mortos...

Não deviam se achar mais importantes que o pó espargido da estante...
Num único tempo chamado Eternidade que dura o mesmo tempo de cada instante...

Todos ficarão perplexos: não há alma rica e pobre, humilde ou esnobe, iracunda e serena...
Torpe e nobre, bonita e feia, sublime ou rasteira, grande ou pequena...

As almas são todas da mesma etnia:
sem sexo, status, complexos, fama, grana, hierarquia...

O superstar não será uma “super alma”!
Mas, como o Fidalgo de Gil Vicente, será julgado como todos...
Não por juízes displicentes, mas pela força criadora da vida...
Não por uma sociedade imersa na superficialidade...
fugaz...
Mas, pela força que criou a consciência...
E o amor, a razão, o prazer, a alegria, a tristeza, a morte, a arte, a poesia, a ciência!

O espírito não morre e o Cosmos nasce do Caos
O que Deus dá, Deus não toma de volta
Mas, Ele guarda a todos com suas asas
Recolhe os frutos verdes, os maduros e os podres
E a tudo aproveita
Os verdes, guarda: amadurecerão...
Se não for na aurora da vida, será na escuridão...
Dos maduros faz bons pratos.
Os podres, alguns regenera
Os infecundos, não dá, joga para os ratos...

Tanta gente de terno vira comida de rato...
Tanta gente de toga vira comida, vira bosta de rato...

Tanta gente de Porsche ou de bike
Tanta gente descalça ou de Nike
Tanta gente dedicada à religião
Tanto ateu, judeu, francês,
Francisco, Chico, Chinês, Alemão...
Tanta gente que dizia “sim” nessa balbúrdia...
Tanta gente que Ele tira da masmorra...
Tanta gente de quem Ele tira a “coroa” e diz: não!

O fogo é para todos...
Mas, o fogo também restaura e prepara
Minha hipótese, minha máxima temporária
Minha religião tem sede de justiça
Meu Deus não veste indumentárias faustosas
Não usa armas ruidosas
Muito menos para impressionar
Cumpre promessas e ama antes de “educar”
Do latim educere
Ex (para fora)
Ducere (conduzir)
Leva-nos para dentro de nós
Para nos resgatar de nossa vaidade
E nos preparar pra o mundo que está fora de nós
Leva-nos para fora...
Levando-nos para a Verdade...
Ama antes do educere...
Educa para a Realidade...

Não finge ser o que não é...
Não deixa feder o que esconde
Não anda atrás de posições remuneradas
Não cria leis para o seu bem-estar
Meu Deus não é deste mundo
Tudo que escrevi, Ele já sabe
Não segue nenhum partido fraturado, fodido...
Não é uma **** da novela das nove...
Cujo personagem sequer é o de uma **** de verdade...
Nem um policial que busca sua própria proteção...
Criam o ódio, a dissolução, e os coletes para absorverem as pancadas da subversão...
Se existe um Deus, não me é tal qual aquele político filho da **** que deixou a obra inacabada...
Nem aquele assaltante que matou por quase nada...
Como tem filhos da **** na caminhada...
Nem eu, nem você...
Nem rico, nem pobre, nem João, nem Pop-Star...
Se existe um Deus, este não se discrimina em palavras,
neste português vulgar...
Se existe um Deus está no sorriso da criança...
Não está em notas do Real ou Dólar...
Estará no gesto simples...
O insueto...
No amor, na graça, na paz de espírito...
Se na estrela, indiferente...
Se na babugem, a do mar...

Fogo com fogo dá mais fogo ainda...
O fogo destrói os fracos, ou o que é fraco nos fortes...
O fogo limpa a merda por cima da imagem mal formada...
O fogo só deixa os melhores, ou o que há de melhor nos vis e nos nobres...

Quem não suporta o fogo não suporta a prova...
Deus prova e aprova quem ele acha que merece prova...
E reprova o que há de sujo, mas ninguém é tão sujo que não possa ser provado no fogo...
Deus joga no mar, na relva, mas às vezes, por amor, sempre por amor, também joga no lodo!

Ah, Céu, tu mesmo existes?
Há, em ti, pódios, palanques, púlpitos?
Se sim, me deixe passar uma temporada no Inferno!
Para ver se tenho menos repulsa destes títeres que aqui pulsam...

Ah, Céu, tu és mesmo uma porta sempre aberta?
Ou tu és como portas de bancos, prisões, corações?
Se sim, Céu, deixe-me conhecer primeiro as sub-regiões do Inferno!
Talvez, lá, haja um lugar menos cruel que as portas cerradas deste Céu...

Ah, Céu, tu recebes os redimidos, até aqueles que se dizem meus inimigos?
Até aqueles que maltratei, humilhei, com quem briguei, rejeitei, não ajudei?
Tudo bem, Céu...
Mas, até políticos, Céu, e seus bonecos galardoados, que “passaram” em concursos ou foram de forma “idônea” indicados?
Ah, Céu, por favor, deixe-me visitar por alguns dias, semanas, meses (na Eternidade o tempo nem prospera, é um relógio sem ponteiro, é uma erva que não murcha e não cresce), ah, Céu, não me esquece!
Deixe-me lá um pouco, então, vou perguntar ao Diabo como é ser Diabo e tal, pois, Céu, ir descansar na Eternidade com políticos, *****, ninguém merece!

Ah, Céu, leva-me para os seus recônditos...
No Céu não tem pódio, concurso, cota, certame...
Ou terá?!

Deus abre, fecha portas...
Não distribui medalhas...
Não elege canalhas...
Não há vagas para carros caros de um lado...
E outras para veículos desditosos...
Uma vida de merda fadada ao fracasso e outra exitosa...
Todos assexuados e regidos por uma energia etérea...
Despidos de desejos efêmeros e riquezas ilusórias...

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Não se trata de um Comunismo barato, ou outro sistema dissimulado...
Como seria uma Democracia de fachada...
Não é um reduto de políticos que não fazem nada...
Nem de uma força repressiva ociosa e corrupta...
Não é dividido em lotes e quinhões nas mãos de uma dúzia de filhos da ****...
É o refúgio dos deuses, dos anjos, dos mendigos, sofredores, surripiados...
É... Simplesmente...
Nós, desmaterializados,
desta vida prepotente...

Não há regimes insinceros como a “Democracia Representativa”
Que representa os ricos, empresários, políticos, quando representa a ***** de alguma coisa...
Os sacos de merda afundados em poltronas pomposas
Câmaras, plenários, assembleias, bordeis, comícios
Coisas que atraem os merdas que se chafurdam nelas como no lixo se revolvem os bichos

Democracia Representativa: representam seus próprios interesses: criam leis que favorecem a eles próprios...
Criam aparatos de segurança para se protegerem dos outros animais “não políticos”
Que atrapalham seus ideais, ou melhor, seus “negócios”...

Mas, o povo vota, isso é democracia, *****!
Sim, só há “democracia” durante o voto, do povo cativo
Após este ritual em que somos coagidos
A irmos votar nestes bandidos travestidos
Em seus ternos polidos
No mínimo, precisamos registrar nosso voto
Branco ou nulo
Somos ou não “patriotas”?
Em qual idiota votar desta vez?
Ou nós é quem somos os idiotas?

Descartados como papel higiênico usado!
Pronto, exercemos nossa “democracia”...
Até o próximo espetáculo!
Adeus, até outro dia!

Promessas vazias que se perdem no espaço e no tempo
No tempo que passa e que muda o espaço
Um carro para cada político com mais “espaço”
Uma casa para cada legislador ou juiz comprados
Uma casa agora com mais “espaço”...
Para cada filho da **** que se vendeu a troco de mais “espaço”...
Nosso voto, lembrando, que passado um tempo foi também parar no espaço!
Ou em algum destes “espaços”...

Gastamos ou perdemos nosso tempo tentando conquistar alguma cidadania?
A solução é se tornar político também?
Ou nos tornarmos alguma outra coisa torpe e contraditória que o valha?
Ou... deixar o bonde andar e não fazer coisas tão deploráveis como vender o próprio voto?
Como seríamos capazes de não ceder-nos nesta (ou a esta) vozearia?
Como é possível não perdermos a esperança num futuro vário?
Haverá um só homem ou mulher que dê algum exemplo digno da Humanidade em termos políticos?
Haverá uma única democracia que seja, verdadeiramente, “representativa”, que não traia na pragmática a etimologia do termo desde seu sentido mais geral e semântico?

Apaguemos um pouco a luz do porão do passado amargo...
E tenhamos fé nas coisas boas que estão por vir...
Não nos iludamos com coisas que passam e, portanto, nos traem...
Cultivemos o amor, busquemos a justiça...
E Deus aparecerá em nossas conquistas...

Ah, Céu, qual religião seguir para te conseguir ou és tu quem me consegues?
Ah, Céu, mesmo que no mundo mil portas me abrir, quando eu te bulir não me negues!




By Danillo Macedo

MEMORIAL DE AIRES: UMA LEITURA DE SUA ESCRITA DIARÍSTICA



Prof. Me. Danillo Macedo




Trabalho realizado para integralização de uma das disciplinas que fiz na ocasião em que eu era aluno regular do mestrado em Letras e Linguística, área de estudos literários, pela UFG-GO. Mestrado que concluí em 2015.

MEMORIAL DE AIRES: UMA LEITURA DE SUA ESCRITA DIARÍSTICA

INTRODUÇÃO

Neste trabalho (um ensaio), discorro sobre uma particularidade desta obra, cujo gênero literário é o “romance realista”, a saber: sua “escrita diarística”. Mas, eu poderia ter desenvolvido (focado em) outros temas também: as relações interpessoais, a questão da terceira idade em uma rotina cosmopolita, os hábitos culturais da sociedade burguesa da época, a linguagem empregada por classes sociais e épocas determinadas, a questão do “platonismo” (não somente em termos de “amor”, mas em termos afetivos gerais e intelectuais...), questões políticas como ideologias sobre a escravatura (também no calor da época...) etc. Meu escopo, portanto, foi um aspecto específico do livro: “sua estruturação artístico-diarírstica”.
Memorial de Aires faz parte da segunda fase da produção literária de Machado de Assis, a fase que se convencionou chamar realista, a partir da qual ele insere um novo estilo, assim como passa a abordar temas mais sóbrios, profundamente concentrados na sua fina ironia, no seu agora patente pessimismo sobre as questões que envolvem o amor entre o homem e a mulher, assim como sobre Deus e a vida humana transitória; espírito crítico também infundido nas relações que movimentam a política, a filosofia e a história.
Outrora romântico e, naturalmente, mais idealista; agora, realista, mais desiludido e crítico; menos subjetivo, influenciado pelo cientificismo de teorias positivistas, deterministas e evolucionistas, embora ele também questione as bases dessas linhas de pensamento.
Machado começou essa postura realista com o que nele, talvez, seja sua grande marca: a ironia. O livro que deu início a essa nova fase começa com a história de um homem que já morreu (Memórias póstumas de Brás Cubas), ou seja, é extremamente irônico o fato do narrador anunciar-se como jazido. A mesma ironia literária se repete no Memorial, como é possível esse diário intitulado Memorial ser verdadeiramente um diário (íntimo, no caso; uma vez que Aires também deixa claro que trata-se de um diário particularmente “íntimo”) sendo que, na verdade, no mundo factual, trata-se de um romance passível de ser lido por todos? Um romance na forma de um memorial escrito no modelo de um diário, “não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano em S. Paulo” (ASSIS, 2010, p. 23)
Um memorial que concatena as lembranças de tal forma evocando cenas, episódios, descrições físicas e psicológicas, apreciações de um narrador escritor, que faz dele um autêntico romance. Por fim, tem-se tanto na forma quanto no conteúdo, ao mesmo tempo: diário, memorial e romance; na ficção da história dele mesmo, na sua fábula, metalinguisticamete, pois o protagonista escreve esse tal diário e, na realidade, externamente, temos o próprio diário, como se Aires tivesse existido de verdade.
Para um espírito objetivo e realista, nada mais apropriado que o diário como molde da sua fantasia criativa; uma vez que é atribuído a esse gênero a propriedade de ser autenticamente verdadeiro, fiel aos fatos, próximo das verdades mais sinceras, das revelações mais cruas, honestas e inesperadas; é claro que trata-se aqui de um diário “ficcional”, mas o diário íntimo como tal, na sua constituição mais pura, antes que pudesse chegar ao conhecimento do grupo mais restrito, é tido como a própria vida de quem o escreveu, não sendo, portanto, literatura no sentido de imitação da vida, mas a própria vida reproduzida nas suas páginas. Portanto, a escolha de Machado nos permite exatamente essa simulação, a simulação da vida fluindo naturalmente, como ela fluiria mesmo se se tratasse, aqui, de um diário de verdade.
Com isso já podemos admitir, já como uma das conclusões da análise da estrutura diarística do Memorial, que a escolha do respectivo gênero não foi aleatória, mas sim resultado da subjetividade consciente (Hegel) de Machado, do seu empreendimento artístico, uma vez que de outra forma, usando um outro modelo para o seu romance, talvez não fosse possível por em prática todas as reflexões instigantes, os comentários irônicos, os pontos de vista políticos, e até mesmo as veleidades mais banais em suas mais de 120 páginas.
O que pode significar também uma espécie de metacriação literária, uma vez que o gênero diário, como gênero puro, serve aqui, simulado, como repertório, ou seja, como material para a construção de uma narrativa de ficção; o qual possibilita, pela engenhosidade do autor, fazer com que as “confissões”, em ordem cronológica (precisamente as confissões e não necessariamente as ações), do dito diário, façam concatenar, numa espécie de narrador em terceira pessoa (pois observa tudo, ao longe, as ações alheias, que muitas vezes se coincidiu com as dele próprias, na medida em que escreve), as ações observadas, as ações dele e a dos observados em seu diário que, ironicamente, e propositalmente, tornam-se, finalmente, personagens de uma estória criada nesses relatos diários. Logo, a escolha do diário parece ter sido proposital, como instrumento de reflexões, mas também apenas pretexto para a construção de um romance.  


I.                   O GÊNERO DIÁRIO: MERO PRETEXTO OU RECURSO INSUBSTITUÍVEL PARA A CRIAÇÃO DO MEMORIAL DE AIRES?
Seja com base na primeira perspectiva de escolha do gênero diário, como mero pretexto para a formação de um romance; seja com base na segunda, aquela que vai de encontro com a ideia de diário como recurso insubstituível de que lançou mão o autor para que fosse possível tecer a obra como tal, assim como arregimentar uma série de pontos de vista de um olho particular que, de outro modo, por meio de outro gênero, não seria possível ou não teria o mesmo efeito, tem-se o gênero diário como repertório literário. Entende-se por repertório literário os elementos de que lança mão o escritor de ficção para a redação do seu texto. Quem melhor define o termo é o crítico literário israelense Itamar Even-Zohar, o qual propõe um construto teórico que conhecemos por Teoria dos Polissistemas (1990, p. 39):

"Repertoire" designates the aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any given product. These rules and materials are thus indispensable for any procedure of production and consumption[1].
           
Assimilando a ideia de repertório proposta por Itamar como conjunto de elementos textuais que de maneira orgânica dão forma ao conteúdo do texto, atribuímos ao gênero diário um desses elementos repertoriais, em um dos níveis propostos por Itamar ao repertório, o nível dos “gêneros”. A saber, são pelo menos três os níveis propostos por ele: 1º) o nível dos elementos individuais, os quais incluem lexemas e morfemas; 2º) o nível dos sintagmas, que é quando estes elementos se organizam de modo a produzir enunciações que façam sentido, ou seja, as sentenças; e, por último (3º), o nível dos modelos, que é o resultado da habilidade criativa do escritor na composição do seu texto como um todo e, exatamente aqui, entra a questão do uso de regras gramaticais e discursivas na composição dos gêneros que darão forma à obra, como um todo.   

II.                MEMORIAL DE AIRES: A FÁBULA DE UM DÍARIO
Memorial de Aires possui uma estrutura diarística tal que o aproxima do espírito romântico, ou seja, a liberdade do estilo e a subjetividade do eu narrador. Mas, esse romance, último da carreira literária de Machado, pertence à sua segunda fase, a fase realista e, portanto, não se deixa levar pelos idealismos românticos na sua essência, pelo contrário, aqui, como já foi dito, impera o pessimismo determinista, as reflexões filosóficas, a ironia etc.
O enredo é simples e estático; Aires é quem narra os mesmos movimentos na sua leveza de velho sábio; se há movimento na obra, é sempre pelos olhos de Aires, é isso o que limita as ações e faz o romance parecer monótono, mas trata-se de uma monotonia proposital, artística, pois o próprio Aires, como resultado da fantasia criativa de Machado, insinua que nos romances coisas impressionantes acontecem, mas que na vida real não, há sim o corriqueiro, a rotina, a melancolia etc. E, vale ressaltar que, mesmo havendo demasiadas descrições e reflexões, ainda assim temos uma autêntica estória, ou estórias, de tal maneira que se tirássemos delas a estrutura diarística continuaria havendo uma narrativa acessível, mesmo sem as particularidades que dizem respeito ao gênero diário.
          
III – O GÊNERO COMO REPERTÓRIO EM MEMORIAL DE AIRES: DIÁRIO ÍNTIMO OU MEMORIAL?
Há indícios no texto de que ele se trata, ao mesmo tempo, de um diário e memorial. Machado de Assis demonstrou ser perfeitamente possível essa simbiose no seu Memorial, uma vez que, como já foi observado, trata-se de um romance desenvolvido em um memorial escrito na forma de diário. O próprio Aires denomina seu diário de memorial. E não é só o fato do autor chamá-lo de memorial que faz dele tal, a peça chave está especificamente no seu conteúdo, isto é, um diário feito de registros da própria vida do autor (Aires) no intuito de eternizar “para si mesmo” (ou para os outros, uma intenção secreta que Aires também explicita com suas ironias) a própria existência:

Meu velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o ministério Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou trocarias tudo. (ASSIS, 2010, p. 61)

Como é observável na estrutura textual do livro, com as entradas diarísticas respeitando rigorosamente uma ordem cronológica que vai de 9 de janeiro de 1888 a um dia sem data em meados do mês de setembro do ano de 1889, podemos, mais uma vez, afirmar que o livro em questão tem tanto na forma quanto no conteúdo características de diário e de memórias; ambos, em simbiose artística, fazem originar um autêntico romance. E a autenticidade diarística atribuída ao gênero em questão, dentro dos limites da sua ficção, tem essa idéia de diário íntimo corroborada por ASSIS, 2010, na própria voz de seu Aires, como exemplo a p. 22 com os seguintes termos: “Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia essas folhas de solitário”. Ou seja, é coisa de diários esse hábito de, em um determinado momento dos registros, empreender este suposto plano: destruir todos os seus vestígios.
Memorial de Aires, enfim, tem todas as características extra-textuais e também textuais básicas do gênero diário íntimo. Algumas delas seriam, por exemplo, o fato de que Aires escreve para si mesmo, sem deixar explícita alguma expectativa de que algum dia seria, verdadeiramente, lido; mas, isso persiste incólume apenas até a p. 30 e, depois dela, revela que o “íntimo” do seu diário é um íntimo comprometido, e, passa a não ser “tão íntimo”. O que não é, todavia, um problema para o caráter de íntimo do diário, mesmo que o diário em questão não fosse ficção, uma vez que nenhuma “intimidade” é, verdadeiramente, idônea. Nessa página, ele (Aires) então, deixa isso bem claro, na parte que começa assim (idem, ibidem):

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.

Aires dá ainda uma definição para seu diário-íntimo-memorial (ou romance-diário-íntimo-memorial) na página 65: “diário de fatos”; eu acrescentaria a “diário de fatos”, “reflexões”. Seguem abaixo algumas citações que evidenciam que Memorial de Aires (idem, ibidem) estrutura-se, sobretudo, na forma de um autêntico diário, no caso, como foi discutido, um diário-memorial, tratando-se, por conseguinte, de um legítimo romance-diário-íntimo-memorial:

“Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular” (p. 38);
“Conversações do papel e para o papel” (p. 42);
“Fique isto confiado a ti somente, papel amigo, a quem digo tudo o que penso e tudo o que não penso” (p. 48);
“Noite de família; saí cedo, vim para casa tomar leite, escrever isto e dormir. Até outro dia, papel” (p. 49);
“Não diria isto a ninguém cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes com paciência, e alguma vez com satisfação, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda que me custe, e não me custa nada” (p. 98).

IV – A ESTRUTURA DO DIÁRIO ÍNTIMO EM MEMORIAL DE AIRES

O gênero diário íntimo representa o resultado imediato da reprodução da vida de quem o compõe, diferente das obras de ficção que são inventadas e, portanto, passam por um processo de análise e estruturação complexa, assim como de retirada de fatos e inserção de outros, o que não pode ocorrer no registro de um diário autêntico, o qual testemunha a vida tal como ela é, e, dessa maneira, os fatos tal como ocorreram, bons ou ruins, interessantes ou não, embora a maneira como são narrados pode torná-los mais interessantes.
A literatura, portanto, não “reproduz” a vida, ela a “emula”, encerrando um novo mundo em si mesma. O diário não, ele não imita a vida, ele é a própria vida que, por fim, pode converter-se em literatura e tornar-se diário “fictício” a posteriori; uma produção escrita que entrou no sistema literário por ter abandonado sua propriedade de “particular”.
Machado de Assis, se a gente pensar mais um pouco nesta questão do diário íntimo como aquele que acompanha a dinâmica da vida da forma mais fidedigna, parecia ter consciência deste aspecto de “monotonia” da vida, cuja rotina é transcrita para o seu diário. Podemos evidenciar isto na entrada do dia 30 de setembro, na p. 81, em seu Memorial (de Aires) (idem, ibidem):

Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.
        
O diário íntimo existe desde a Idade Média, porém, nessa época, era um gênero restrito e o que, na realidade, predominavam eram as leituras coletivas guiadas pelos detentores do poder (em termos religiosos e também culturais). Na fase romântica da literatura (refiro-me ao chamado “Romantismo”), o diário ganhou mais força até o ponto de termos repercutidos nos dias de hoje os diários de ficção. Isso se deu pelo fato do Romantismo ter sido marcado pelo seu espírito libertário que atravessou diversos campos epistemológicos: ciência, religião, política etc. Basta lembrarmos, para citar apenas um exemplo, e da contemporaneidade, do “Diário de um Fescenino”, de Rubem Fonseca.  
O romance, enquanto gênero literário, do Romantismo ou não, tem dessas nuances: mesclar, na sua estrutura composicional, vários gêneros esparsos: cartas, poemas, canções etc. Ou, ser ele próprio todo diário, como “Os sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, ou ser ele todo poema como o poema-livro “Poema sujo”, de Ferreira Gullar.
A confissão, o diário, a crônica são, ainda no final da Idade Média, fontes de informação em que o indivíduo apresenta, por vezes, sua vida privada, isto é, seu corpo, suas percepções, seus sentimentos e suas concepções das coisas do mundo, apanhados sinceros, de forma sempre solitária, escrevendo para si mesmo, tanto quanto pode ser uma memória redescoberta que pretende “pintar o ser de frente e não de perfil” (DUBY, 1990, p. 533). 
Machado também deixa clara essa relação leitura solitária/escrita solitária neste seu último romance:

Hoje, que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo, já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A índole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus propósitos secretos. A aposentadoria me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e, não podendo falar só, escrevo. (ASSIS, 2010, p. 97)

IV. 1. Primeiras definições
Em seu livro, O pacto autobiográfico, Philippe Lejeune nos ajuda a definir características fundamentais do diário íntimo tais como:

→ É uma atividade íntima;
→ É uma atividade regular, mas não necessariamente “diária”;
→ Pode perdurar ou não;
→ Para escrever um diário é preciso gostar de escrever e ter preocupação com o tempo, com a passagem dele; além de acuidade para observar os contrastes das mudanças várias entre umas páginas e outras;
→ Sugere uma escrita cotidiana, “vestigial” e com a demarcação do tempo;
→ O diarista não pode avançar ao futuro, tampouco modificar o que já passou; é possível, no entanto, fazer “erratas” ou “observações” como podemos ver nas seguintes citações do Memorial:

Quando escrevi há dias (duas ou três vezes) que "a moça Fidélia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma", tinha em mira o afastamento em que ela vinha estando da casa da amiga. Ei-la que continua a lá ir, e a se deixar ver do irmão que a amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir - ou (cousa mais grave) não quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes perdoar. (ASSIS, 2010, p. 99)

Aquele dia 18 de setembro (anteontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais claro que outros, por causa da noite que passamos os três velhos. Talvez não escrevesse tudo nem tão bem; mas bastou-me relê-lo ontem e hoje para sentir que o escrito me acordou lembranças vivas e interessantes, a boa velha, o bom velho, a lembrança dos dous filhos postiços... Continuo a dar-lhes este nome, por não achar melhor... Principalmente aquela felicidade média ou turva de pessoas que vão perder um de dous bens do céu, essa expressão que vi em D. Carmo mais forte ainda que no Aguiar... (idem, ibidem, p. 79)

Reli também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa, como a realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará transferir os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais. (idem, ibidem, p. 70)

Mais definições:      
→ Público mais jovem e mais feminino;
→ Pode ser que o mundo, aparentemente real, do diarista, seja fruto da sua imaginação; as relações interpessoais podem ser falácias, as reflexões facécias etc.

Nesse último ponto, o Memorial foge à “regra”; primeiro porque, como o próprio título já diz, trata-se, anterior à proposta de um diário íntimo, de um “memorial” em forma de um diário íntimo; e, como se sabe, os memoriais são típicos dos mais velhos (O Conselheiro Aires já era um senhor aposentado), justamente por tratar-se de um gênero que vai se dispor de uma série de lembranças vividas ao longo de muitos anos. Isso, sobretudo, reforça a ideia de hibridismo característica mesma do gênero romance que, no caso do Memorial de Aires, é um híbrido, como já vimos, dos gêneros memorial e diário íntimo.
Em seguida, tendo que Memorial de Aires é todo ficção, na sua fábula, a proposta é criar um mundo objectualizado, como já dizia Wolfgang Kayser na sua Análise e Interpretação da Obra Literária, ou seja, a literatura cria um mundo próprio, encerrado em si mesmo (baseado num mundo objectual indiferente àquilo que é considerado mera ficção); o Memorial, portanto, cria um mundo que se esforça por imitar o cotidiano em todos os pormenores, a passos lentos, na monotonia da vida, nas suas peripécias mais banais e, tudo isso, registrado em um diário fictício, “sem” falácia (do ponto de vista da verdade ficcional). Não há nenhum compromisso, ali, por parte do diarista fictício, em criar um “mundo de imaginação”, embora esse mundo seja todo imaginação na factualidade fora da ficção (proposta mesma das obras consideradas “realistas”).

Mais definições:
→ A originalidade é muito importante, não é bom que o diário seja, por exemplo, “fotocopiado”;
→ Poder de seleção; sensibilidade para abrir mão de excessos, do prescindível, como mostram as seguintes citações:

“O mais que a mana me disse não vai aqui para não encher papel nem tempo, mas era interessante. Vai só isto, que jantou lá e Fidélia também, a convite de D. Carmo”. (idem, ibidem, p. 71)

“Sobre isto (que não tinha sentido claro nem intenção) dissemos cousas que não importa escrever aqui”. (idem, ibidem, p. 119)

→ O diário se aproxima (e faz quem dele tem acesso se aproximar) da vida privada das pessoas;
→ O ato da escrita do diário pressupõe um momento “bolha”;
→ Existe uma relativa restrição guiada pela mínima cogitação da possibilidade de que alguém o leia um dia, como fica claro nos seguintes exemplos:

                                             Repito, não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento. Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e se eu morrer de repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar dela que lhe não contei o que já escrevi atrás. (idem, ibidem,p. 112)

Lembrava-se, sorrimos, e entramos a falar dos noivos. Eu disse bem de ambos, ela não disse mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de ver casar a viúva, como se fosse coisa condenável ou nova. Não tendo casado outra vez, pareceu-lhe que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então (releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora tais ou quais remorsos de não havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar demais de pessoa tão excelente. (idem, ibidem,p. 116)

→ O diário é uma espécie de espelho, em virtude da faculdade do auto-conhecimento;
→ O diário serve também como modo de reflexão tanto de si quanto dos outros:

Explico o texto de ontem. Não foi o medo que me levou a admirar o espírito de D. Cesária, os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa. Já confessei alguns dos seus merecimentos. A verdade, porém, é que o gosto de dizer mal não se perde com elogios recebidos, e aquela dama, por mais que eu lhe ache os dentes bonitos, não deixará de mos meter pelas costas, se for oportuno. Não; não a elogiei para desarmá-la, mas para divertir-me, e o resto da noite não passei mal. (idem, ibidem,pp. 120-121)

→ O diário, geralmente, aborda assuntos banais reverenciados pelo puro prazer da escrita;
→ É considerado um gênero, pelo senso comum, egoísta, ensimesmado, escrito por pessoas anti-sociais e inter-relacionalmente “perturbadas” por alguma questão;

Conselheiro Aires, quanto a essa última definição, no entanto, prova, no seu mundo da ficção, que isso não é verdade; raras vezes se mostrou anti-social; muito embora “perturbado” por suas próprias divagações; certa vez desejou que Rita, sua irmã, não o fosse visitar, mas isso é porque estava enfermo; no mais, sempre mostrou-se um homem muito interativo com as pessoas ao seu redor.

→ É um gênero que pode ser escrito por qualquer um embora não foram apenas quaisquer pessoas que se dedicaram a ele;
→ O diário pode ser encerrado com a morte do diarista (uma das possibilidades de encerramento de um diário);
→ Quando parar? Não sabemos se Conselheiro Aires morreu no dia seguinte à sua última anotação, o texto não nos oferece essa informação. Mas, o fato é que ele interrompeu a escrita do seu diário abruptamente logo após Fidélia, personagem cuja história foi o ponto de partida do seu diário, deixou, definitivamente, o Brasil rumo a Portugal com seu noivo (e irmão “postiço”) Tristão.
  Geralmente, há um destaque ao começo e que, também de maneira geral, está fundamentado num “momento crise”;
  Pode ser que não haja mais o que ser escrito no diário em processo, restando algumas alternativas como: destruição, interrupção ou publicação literária.

No caso de Aires, o que seria o “momento crise” foi o ócio mesmo; começou a escrever no primeiro aniversário do seu regresso ao Rio de Janeiro, logo após sua aposentadoria e, é claro, a necessidade de deixar sua vida registrada na história face à morte iminente. Esse momento teve ainda como mola propulsora a curiosidade acerca da vida de Fidélia (seu quase amor platônico) a partir do primeiro encontro com ela no cemitério, quando ela prestava homenagens ao seu falecido marido.
O primeiro assunto relevante de Aires, além do seu regresso da Europa ao Brasil, foi Fidélia, seguida da aposta que fez com sua irmã Rita, dizendo que ela voltaria a se casar e, a princípio, ele pensou que ele mesmo é quem desposaria Fidélia, uma amiga da família por quem ele nutria um “amor” unilateral. Como ela se casara com Tristão e foram para Lisboa, ao que parece para nunca mais voltar, pode ser que, por essa razão, ele tenha desistido de continuar escrevendo, uma vez que sua principal matéria tinha se desfeito: sua vida cotidiana que tinha como protagonista das suas observações a adorável Fidélia; tanto é que sua última anotação mostra que ele ia adentrando à casa dos Aguiares, mas retrocedeu a “pé ante pé” (idem, ibidem, p. 135), ou seja, a casa dos pais da jovem já não era mais foco do seu interesse.

    Mais definições a partir da leitura de Lejeune:
→ Não há previsão de desfecho no diário íntimo; são raros, inclusive, os diários que possuem desfecho, pois o mesmo sugere a própria morte de quem o escreve (estaria Machado de Assis prevendo que aquele seria seu último romance?);
→ O diário seria, portanto, o gênero da “escrita sem fim”;
→ Somente tem um relativo fim os diários programados (diário de viagem, de férias etc.). A auto-biografia também tem um fim, um final proposto;
→ Outro fim possível é pelo fim do suporte, fim do caderno etc. Assim, o diário “digitado” poderia render bilhares de páginas antes do que seria seu fim definitivo.
          
IV.2. Segunda seção de definições:

Roland Barthes, em seu livro O rumor da língua, no capítulo intitulado Deliberação, também nos dá suporte para mais algumas definições de diário íntimo, como as que serão dispostas a seguir em forma de paráfrases por mim elaboradas:

           O diário é um depoimento pessoal;
           Escrever no diário é um hábito vicioso, aparentemente volitivo. Mas, para quem sente prazer nesse momento de intensa singularidade, pode tornar-se um hábito quase “fisiológico”;
           É prazeroso, porém, a princípio, não tem valor literário;
           O diário enquanto estiver restrito ao domínio íntimo não deve possuir compromisso algum com a ficção ou com a literatura, mas pode pertencer a esta se inserido no domínio público;
           Compromisso com a sinceridade: dizer de mim e julgar:

Aires amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes. (idem, ibidem, p. 102)

            A sinceridade, apesar do diário íntimo, na sua origem, não ter nenhum compromisso com a ficção, poderia ser melhor alcançada justamente em matéria de ficção.

Abaixo, indico quais seriam as possíveis motivações para tornar um diário, na sua origem, íntimo, numa obra de ficção, mesmo sem modificações:

*       A busca daquilo que é peculiar ao indivíduo;
*       Registro histórico;
*       Interesse pela própria vida ou pela vida de quem mantém ou manteve um diário;
*       Oficina de frases (o diário, nesse sentido, possui forte lirismo meditativo, como nessa passagem do Memorial: “As teses escolares dedicam-se a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa” (idem, ibidem, p. 100)).

As citações seguintes são, para complementar essa apreciação de Memorial de Aires, um conjunto que forma, pelo menos em partes, uma autêntica oficina de reflexões:
        
Apesar de não ser dado a melancolias, nem achar que o ofício de banqueiro vá com tais lástimas, separei-me dele com simpatia. Vim pela Rua da Princesa, pensando nele e nela, sem me dar de um cão que, ouvindo os meus passos na rua, latia de dentro de uma chácara. Não faltam cães atrás da gente, uns feios, outros bonitos, e todos impertinentes. Perto da Rua do Catete, o latido ia diminuindo, e então pareceu-me que me mandava este recado: "Meu amigo, não lhe importe saber o motivo que me inspira este discurso; late-se como se morre, tudo é ofício de cães, e o cão do casal Aguiar latia também outrora; agora esquece, que é ofício de defunto. Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que preferi atribuí-lo a algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro. Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol. Creio que falavam da Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão filósofo, e o mérito do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá dado algum dia o meu cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com vozes defuntas. (idem, ibidem, pp. 78 – 79)

Leia, e leia também esta outra confissão que faço das suas qualidades de senhora e de parenta. Talvez eu, se vivêssemos juntos, lhe descobrisse algum pequenino defeito, ou ela em mim, mas assim separados é um gosto particular ver-nos. Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquele penedo contíguo ao mar, que batia nele com violência. A imagem era viva, e se não foi a própria ouvida ao rei de África, era contudo verdadeira. (idem, ibidem, p. 112)

Aquele drama de amor, que parece haver nascido da perfídia da serpente e da desobediência do homem, ainda não deixou de dar enchentes a este mundo. Uma vez ou outra algum poeta empresta-lhe a sua língua, entre as lágrimas dos espectadores; só isso. O drama é de todos os dias e de todas as formas, e novo como o sol, que também é velho. (idem, ibidem, p. 120)


  IV.3. – Últimas definições
Maurice Blanchot em sua obra intitulada O livro por vir, no capítulo O diário íntimo e a narrativa, nos dá subsídios para mais definições ao gênero diário íntimo:

- O diário é um mero relato, não pode ser uma narrativa, propriamente dita; o relato do dia a dia não alcança a profundidade da narrativa verdadeiramente literária;
- As entradas diárias, diz-se que ficam presas a datas, numa ordem cronológica; mas, nada impede que o diário resgate lembranças de outras épocas:

Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que às crianças só se punham nomes de santos ou santas. Mas Fidélia...? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como a forma feminina de Fidélio, em homenagem a Beethoven? (idem, ibidem, p. 31)

Na Europa tinha assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira vez que uma senhora pintava diante de mim. Fidélia dispôs-se e continuou. (idem, ibidem, p. 95)

- O diário pode se aproximar do memorial (como já é o evidente caso do Memorial) e se aproxima muito da autobiografia, o que só contribui para as interpretações críticas autobiografistas tão questionadas por alguns pesquisadores;
- No diário íntimo há a possibilidade de vários “eus”; muitos deles latentes no mundo real concreto; como é o caso mesmo de Aires, o qual amava Fidélia e relatava isso em seu diário, mas preferia ter a postura de um senil circunspecto e, contra as próprias veleidades, apoiar a união entre ela e seu pretendente Tristão, com a qual, efetivamente, se casara.

    IV.4. – Reflexões quase finais
α-    O diário seria o discurso de um texto inacabado;
β-  O diário não é, como a maioria das obras literárias, uma espécie de “missão”;
γ-      A ideia de gênero livre é sempre falsa. Com o diário não é diferente, pois vimos uma série de características que lhe são próprias;
δ-      Agradável de se escrever, decepcionante de se ler (isto “em tese”, pelo menos para o seu autor):

“Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final demasiado cético. A mana que me perdoe”. (idem, ibidem, p. 112)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda há muito para se discutir sobre a diaristicidade de Memorial de Aires, mas já podemos inferir que toda a obra em questão é um diário perfeito, que lê-se como se o fizesse a um diário de verdade e não a um produto da ficção. Essa impressão é resultado da maestria do autor em penetrar as diversas consciências, assim como as nuances impregnadas nas páginas diversas do cotidiano. Provavelmente, esse livro foi produzido sob a certeza de Machado de Assis de que ele iria morrer em pouco tempo, mas isso ninguém pode afirmar. É, sobretudo, uma prosa poética, embora realista, cuja poesia emana da destreza da escrita de Machado, de suas reflexões ao longo dos relatos. Os personagens são poucos, o cenário quase o mesmo, o enredo, ou enredos, bastante simples, pois emulam a rotina do dia a dia; mas, a profundidade psicológica com que Aires sonda sua própria mente, assim como tenta perscrutar a de outros personagens é, definitivamente, convidativa e cativante.


Prof. Me. Danillo Macedo


REFERÊNCIAS
Ariès, Philippe - Duby, Georges - História da Vida Privada: da Europa feudal à Renascença - Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1990, vol.2
ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. São Paulo: Escala, 2010.
BARTHES, Roland. Deliberação. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: ______. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
EVEN-ZOHAR, I. Polysystem Studies. In: ______. Poetics Today, vol. 11, 1, 1990. Disponível em <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>.
HEGEL, G. W. F. A poesia lírica. In: ______. Cursos de Estética, vol. IV. Trad. Marco Aurélio Werle, Oliver Tolle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2004.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armenio Amado, 1970.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Trad. Jovita M. G. Noronha, Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.




[1]"Repertório" designa o conjunto de regras e materiais que regem tanto a elaboração quanto a utilização de um determinado produto. Essas regras e materiais são, portanto, indispensáveis para qualquer processo de produção e consumo (Tradução minha).


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