Prof. Me.
Danillo Macedo
Trabalho realizado para integralização de uma das disciplinas que
fiz na ocasião em que eu era aluno regular do mestrado em Letras e Linguística,
área de estudos literários, pela UFG-GO. Mestrado que concluí em 2015.
MEMORIAL DE
AIRES: UMA LEITURA DE SUA ESCRITA DIARÍSTICA
INTRODUÇÃO
Neste
trabalho (um ensaio), discorro sobre
uma particularidade desta obra, cujo gênero literário é o “romance realista”, a
saber: sua “escrita diarística”. Mas, eu poderia ter desenvolvido (focado em)
outros temas também: as relações interpessoais, a questão da terceira idade em
uma rotina cosmopolita, os hábitos culturais da sociedade burguesa da época, a
linguagem empregada por classes sociais e épocas determinadas, a questão do
“platonismo” (não somente em termos de “amor”, mas em termos afetivos gerais e
intelectuais...), questões políticas como ideologias sobre a escravatura
(também no calor da época...) etc. Meu escopo, portanto, foi um aspecto
específico do livro: “sua estruturação artístico-diarírstica”.
Memorial de Aires faz parte
da segunda fase da produção literária de Machado de Assis, a fase que se
convencionou chamar realista, a
partir da qual ele insere um novo estilo, assim como passa a abordar temas mais
sóbrios, profundamente concentrados na sua fina ironia, no seu agora patente
pessimismo sobre as questões que envolvem o amor entre o homem e a mulher,
assim como sobre Deus e a vida humana transitória; espírito crítico também
infundido nas relações que movimentam a política, a filosofia e a história.
Outrora
romântico e, naturalmente, mais idealista; agora, realista, mais desiludido e crítico;
menos subjetivo, influenciado pelo cientificismo de teorias positivistas,
deterministas e evolucionistas, embora ele também questione as bases dessas
linhas de pensamento.
Machado
começou essa postura realista com o que nele, talvez, seja sua grande marca: a
ironia. O livro que deu início a essa nova fase começa com a história de um
homem que já morreu (Memórias póstumas de
Brás Cubas), ou seja, é extremamente irônico o fato do narrador anunciar-se
como jazido. A mesma ironia literária se repete no Memorial, como é possível esse diário intitulado Memorial ser
verdadeiramente um diário (íntimo, no caso; uma vez que Aires também deixa
claro que trata-se de um diário particularmente “íntimo”) sendo que, na
verdade, no mundo factual, trata-se de um romance passível de ser lido por todos?
Um romance na forma de um memorial escrito no modelo de um diário, “não me
lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano
em S. Paulo” (ASSIS, 2010, p. 23)
Um memorial
que concatena as lembranças de tal forma evocando cenas, episódios, descrições
físicas e psicológicas, apreciações de um narrador escritor, que faz dele um
autêntico romance. Por fim, tem-se tanto na forma quanto no conteúdo, ao mesmo
tempo: diário, memorial e romance; na ficção da história dele mesmo, na sua
fábula, metalinguisticamete, pois o
protagonista escreve esse tal diário e, na realidade, externamente, temos o
próprio diário, como se Aires tivesse existido de verdade.
Para um
espírito objetivo e realista, nada mais apropriado que o diário como molde da
sua fantasia criativa; uma vez que é atribuído a esse gênero a propriedade de
ser autenticamente verdadeiro, fiel aos fatos, próximo das verdades mais
sinceras, das revelações mais cruas, honestas e inesperadas; é claro que trata-se
aqui de um diário “ficcional”, mas o diário íntimo como tal, na sua
constituição mais pura, antes que pudesse chegar ao conhecimento do grupo mais
restrito, é tido como a própria vida de quem o escreveu, não sendo, portanto,
literatura no sentido de imitação da vida, mas a própria vida reproduzida nas
suas páginas. Portanto, a escolha de Machado nos permite exatamente essa
simulação, a simulação da vida fluindo naturalmente, como ela fluiria mesmo se se
tratasse, aqui, de um diário de verdade.
Com isso já
podemos admitir, já como uma das conclusões da análise da estrutura diarística
do Memorial, que a escolha do
respectivo gênero não foi aleatória, mas sim resultado da subjetividade consciente (Hegel) de Machado, do seu empreendimento
artístico, uma vez que de outra forma, usando um outro modelo para o seu
romance, talvez não fosse possível por em prática todas as reflexões
instigantes, os comentários irônicos, os pontos de vista políticos, e até mesmo
as veleidades mais banais em suas mais de 120 páginas.
O que pode
significar também uma espécie de metacriação
literária, uma vez que o gênero diário, como gênero puro, serve aqui, simulado,
como repertório, ou seja, como material para a construção de uma narrativa de
ficção; o qual possibilita, pela engenhosidade do autor, fazer com que as
“confissões”, em ordem cronológica (precisamente as confissões e não
necessariamente as ações), do dito diário, façam concatenar, numa espécie de
narrador em terceira pessoa (pois observa tudo, ao longe, as ações alheias, que
muitas vezes se coincidiu com as dele próprias, na medida em que escreve), as
ações observadas, as ações dele e a dos observados em seu diário que,
ironicamente, e propositalmente, tornam-se, finalmente, personagens de uma
estória criada nesses relatos diários. Logo, a escolha do diário parece ter
sido proposital, como instrumento de reflexões, mas também apenas pretexto para
a construção de um romance.
I.
O GÊNERO DIÁRIO: MERO
PRETEXTO OU RECURSO INSUBSTITUÍVEL PARA A CRIAÇÃO DO MEMORIAL DE AIRES?
Seja com
base na primeira perspectiva de escolha do gênero diário, como mero pretexto
para a formação de um romance; seja com base na segunda, aquela que vai de
encontro com a ideia de diário como recurso insubstituível de que lançou mão o
autor para que fosse possível tecer a obra como tal, assim como arregimentar
uma série de pontos de vista de um olho particular que, de outro modo, por meio
de outro gênero, não seria possível ou não teria o mesmo efeito, tem-se o gênero
diário como repertório literário.
Entende-se por repertório literário
os elementos de que lança mão o escritor de ficção para a redação do seu texto.
Quem melhor define o termo é o crítico literário israelense Itamar Even-Zohar, o
qual propõe um construto teórico que conhecemos por Teoria dos Polissistemas (1990, p. 39):
"Repertoire" designates the
aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any
given product. These rules and materials are thus indispensable for any
procedure of production and consumption.
Assimilando
a ideia de repertório proposta por Itamar como conjunto de elementos textuais
que de maneira orgânica dão forma ao conteúdo do texto, atribuímos ao gênero
diário um desses elementos repertoriais, em um dos níveis propostos por Itamar
ao repertório, o nível dos “gêneros”. A saber, são pelo menos três os níveis
propostos por ele: 1º) o nível dos elementos
individuais, os quais incluem lexemas e morfemas; 2º) o nível dos sintagmas, que é quando estes elementos
se organizam de modo a produzir enunciações que façam sentido, ou seja, as
sentenças; e, por último (3º), o nível dos modelos,
que é o resultado da habilidade criativa do escritor na composição do seu texto
como um todo e, exatamente aqui, entra a questão do uso de regras gramaticais e
discursivas na composição dos gêneros que darão forma à obra, como um todo.
II.
MEMORIAL DE AIRES: A FÁBULA DE UM DÍARIO
Memorial de
Aires possui uma estrutura diarística tal que o aproxima do espírito romântico,
ou seja, a liberdade do estilo e a subjetividade do eu narrador. Mas, esse romance, último da carreira literária de Machado,
pertence à sua segunda fase, a fase realista e, portanto, não se deixa levar
pelos idealismos românticos na sua essência, pelo contrário, aqui, como já foi
dito, impera o pessimismo determinista, as reflexões filosóficas, a ironia etc.
O enredo é
simples e estático; Aires é quem narra os mesmos movimentos na sua leveza de
velho sábio; se há movimento na obra, é sempre pelos olhos de Aires, é isso o
que limita as ações e faz o romance parecer monótono, mas trata-se de uma
monotonia proposital, artística, pois o próprio Aires, como resultado da
fantasia criativa de Machado, insinua que nos romances coisas impressionantes
acontecem, mas que na vida real não, há sim o corriqueiro, a rotina, a
melancolia etc. E, vale ressaltar que, mesmo havendo demasiadas descrições e
reflexões, ainda assim temos uma autêntica estória, ou estórias, de tal maneira
que se tirássemos delas a estrutura diarística continuaria havendo uma narrativa
acessível, mesmo sem as particularidades que dizem respeito ao gênero diário.
III – O GÊNERO COMO REPERTÓRIO EM MEMORIAL DE AIRES: DIÁRIO
ÍNTIMO OU MEMORIAL?
Há indícios
no texto de que ele se trata, ao mesmo tempo, de um diário e memorial. Machado
de Assis demonstrou ser perfeitamente possível essa simbiose no seu Memorial, uma vez que, como já foi
observado, trata-se de um romance desenvolvido em um memorial escrito na forma
de diário. O próprio Aires denomina seu diário de memorial. E não é só o fato do autor chamá-lo de memorial que faz
dele tal, a peça chave está especificamente no seu conteúdo, isto é, um diário
feito de registros da própria vida do autor (Aires) no intuito de eternizar “para
si mesmo” (ou para os outros, uma intenção secreta que Aires também explicita
com suas ironias) a própria existência:
Meu
velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o
ministério Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês
que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou
trocarias tudo. (ASSIS, 2010, p. 61)
Como é
observável na estrutura textual do livro, com as entradas diarísticas
respeitando rigorosamente uma ordem cronológica que vai de 9 de janeiro de 1888 a um dia sem
data em meados do mês de setembro
do ano de 1889, podemos, mais uma
vez, afirmar que o livro em questão tem tanto na forma quanto no conteúdo
características de diário e de memórias; ambos, em simbiose artística, fazem
originar um autêntico romance. E a autenticidade diarística atribuída ao gênero
em questão, dentro dos limites da sua ficção, tem essa idéia de diário íntimo corroborada por ASSIS,
2010, na própria voz de seu Aires, como
exemplo a p. 22 com os seguintes termos: “Não sei se me explico bem, nem é
preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia essas folhas de
solitário”. Ou seja, é coisa de diários esse hábito de, em um determinado
momento dos registros, empreender este suposto plano: destruir todos os seus vestígios.
Memorial de Aires, enfim, tem
todas as características extra-textuais e também textuais básicas do gênero diário íntimo. Algumas delas seriam, por
exemplo, o fato de que Aires escreve para si mesmo, sem deixar explícita alguma
expectativa de que algum dia seria, verdadeiramente, lido; mas, isso persiste
incólume apenas até a p. 30 e, depois dela, revela que o “íntimo” do seu diário
é um íntimo comprometido, e, passa a não ser “tão íntimo”. O que não é,
todavia, um problema para o caráter de íntimo do diário, mesmo que o diário em
questão não fosse ficção, uma vez que nenhuma “intimidade” é, verdadeiramente,
idônea. Nessa página, ele (Aires) então, deixa isso bem claro, na parte que
começa assim (idem, ibidem):
Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que
escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque
se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que
me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro,
podem cuidar que te confio cuidados de amor.
Aires dá
ainda uma definição para seu diário-íntimo-memorial
(ou romance-diário-íntimo-memorial)
na página 65: “diário de fatos”; eu acrescentaria a “diário de fatos”, “reflexões”.
Seguem abaixo algumas citações que evidenciam que Memorial de Aires (idem,
ibidem) estrutura-se, sobretudo, na forma de um autêntico diário, no caso,
como foi discutido, um diário-memorial, tratando-se, por conseguinte, de um
legítimo romance-diário-íntimo-memorial:
“Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular” (p. 38);
“Conversações do papel e para o papel” (p.
42);
“Fique isto confiado a ti somente, papel amigo, a quem digo tudo o que
penso e tudo o que não penso” (p. 48);
“Noite de família; saí cedo, vim para casa tomar leite, escrever isto e
dormir. Até outro dia, papel” (p. 49);
“Não diria isto a ninguém cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me
recebes com paciência, e alguma vez com satisfação, a ti, amigo velho, a ti
digo e direi, ainda que me custe, e não me custa nada” (p. 98).
IV – A ESTRUTURA DO DIÁRIO ÍNTIMO EM MEMORIAL DE AIRES
O gênero diário íntimo representa o resultado
imediato da reprodução da vida de quem o compõe, diferente das obras de ficção
que são inventadas e, portanto, passam por um processo de análise e
estruturação complexa, assim como de retirada de fatos e inserção de outros, o
que não pode ocorrer no registro de um diário autêntico, o qual testemunha a
vida tal como ela é, e, dessa maneira, os fatos tal como ocorreram, bons ou
ruins, interessantes ou não, embora a maneira como são narrados pode torná-los
mais interessantes.
A
literatura, portanto, não “reproduz” a vida, ela a “emula”, encerrando um novo
mundo em si mesma. O diário não, ele não imita a vida, ele é a própria vida
que, por fim, pode converter-se em literatura e tornar-se diário “fictício” a posteriori; uma produção escrita que
entrou no sistema literário por ter abandonado sua propriedade de “particular”.
Machado de
Assis, se a gente pensar mais um pouco nesta questão do diário íntimo como
aquele que acompanha a dinâmica da vida da forma mais fidedigna, parecia ter
consciência deste aspecto de “monotonia” da vida, cuja rotina é transcrita para
o seu diário. Podemos evidenciar isto na entrada do dia 30 de setembro, na p. 81, em seu Memorial (de Aires) (idem, ibidem):
Já
lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de
Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para
eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que
pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim
mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e
outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o
acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias;
assim a história, assim o resto.
O diário íntimo
existe desde a Idade Média, porém, nessa época, era um gênero restrito e o que,
na realidade, predominavam eram as leituras coletivas guiadas pelos detentores do
poder (em termos religiosos e também culturais). Na fase romântica da
literatura (refiro-me ao chamado “Romantismo”), o diário ganhou mais força até
o ponto de termos repercutidos nos dias de hoje os diários de ficção. Isso se
deu pelo fato do Romantismo ter sido marcado pelo seu espírito libertário que
atravessou diversos campos epistemológicos: ciência, religião, política etc. Basta
lembrarmos, para citar apenas um exemplo, e da contemporaneidade, do “Diário de
um Fescenino”, de Rubem Fonseca.
O romance,
enquanto gênero literário, do Romantismo ou não, tem dessas nuances: mesclar,
na sua estrutura composicional, vários gêneros esparsos: cartas, poemas,
canções etc. Ou, ser ele próprio todo diário, como “Os sofrimentos do Jovem
Werther”, de Goethe, ou ser ele todo poema como o poema-livro “Poema sujo”, de
Ferreira Gullar.
A
confissão, o diário, a crônica são, ainda no final da Idade Média, fontes de
informação em que o indivíduo apresenta, por vezes, sua vida privada, isto é,
seu corpo, suas percepções, seus sentimentos e suas concepções das coisas do
mundo, apanhados sinceros, de forma sempre solitária, escrevendo para si mesmo,
tanto quanto pode ser uma memória redescoberta que pretende “pintar o ser de
frente e não de perfil” (DUBY, 1990, p. 533).
Machado
também deixa clara essa relação leitura solitária/escrita solitária neste seu
último romance:
Hoje,
que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo,
já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A índole e a vida me deram o
gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciência
uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus
propósitos secretos. A aposentadoria me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia
em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e, não
podendo falar só, escrevo. (ASSIS, 2010, p. 97)
IV. 1. Primeiras definições
Em seu
livro, O pacto autobiográfico, Philippe
Lejeune nos ajuda a definir características fundamentais do diário íntimo tais
como:
→ É uma
atividade íntima;
→ É uma
atividade regular, mas não necessariamente “diária”;
→ Pode
perdurar ou não;
→ Para
escrever um diário é preciso gostar de escrever e ter preocupação com o tempo,
com a passagem dele; além de acuidade para observar os contrastes das mudanças
várias entre umas páginas e outras;
→ Sugere
uma escrita cotidiana, “vestigial” e com a demarcação do tempo;
→ O
diarista não pode avançar ao futuro, tampouco modificar o que já passou; é
possível, no entanto, fazer “erratas” ou “observações” como podemos ver nas
seguintes citações do Memorial:
Quando
escrevi há dias (duas ou três vezes) que "a moça Fidélia foge a alguma
cousa, se não foge a si mesma", tinha em mira o afastamento em que ela
vinha estando da casa da amiga. Ei-la que continua a lá ir, e a se deixar ver
do irmão que a amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir - ou (cousa mais grave) não
quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes perdoar.
(ASSIS, 2010, p. 99)
Aquele
dia 18 de setembro (anteontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais
claro que outros, por causa da noite que passamos os três velhos. Talvez não
escrevesse tudo nem tão bem; mas bastou-me relê-lo ontem e hoje para sentir que
o escrito me acordou lembranças vivas e interessantes, a boa velha, o bom
velho, a lembrança dos dous filhos postiços... Continuo a dar-lhes este nome,
por não achar melhor... Principalmente aquela felicidade média ou turva de
pessoas que vão perder um de dous bens do céu, essa expressão que vi em D.
Carmo mais forte ainda que no Aguiar... (idem,
ibidem, p. 79)
Reli
também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma
nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa, como a
realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da
moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará transferir
os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a
eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em viverem uns
com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais. (idem, ibidem, p. 70)
Mais
definições:
→ Público
mais jovem e mais feminino;
→ Pode ser
que o mundo, aparentemente real, do diarista, seja fruto da sua imaginação; as
relações interpessoais podem ser falácias, as reflexões facécias etc.
Nesse
último ponto, o Memorial foge à “regra”; primeiro porque, como o próprio
título já diz, trata-se, anterior à proposta de um diário íntimo, de um “memorial”
em forma de um diário íntimo; e, como se sabe, os memoriais são típicos dos
mais velhos (O Conselheiro Aires já era um senhor aposentado), justamente por
tratar-se de um gênero que vai se dispor de uma série de lembranças vividas ao
longo de muitos anos. Isso, sobretudo, reforça a ideia de hibridismo característica mesma do gênero romance que, no caso do Memorial de Aires, é um híbrido, como já
vimos, dos gêneros memorial e diário íntimo.
Em seguida, tendo que Memorial de Aires é todo
ficção, na sua fábula, a proposta é criar um mundo objectualizado, como já dizia Wolfgang Kayser na sua Análise e
Interpretação da Obra Literária, ou seja, a literatura cria um mundo
próprio, encerrado em si mesmo (baseado num mundo objectual indiferente àquilo que é considerado mera ficção); o Memorial, portanto, cria um mundo que se
esforça por imitar o cotidiano em todos os pormenores, a passos lentos, na
monotonia da vida, nas suas peripécias mais banais e, tudo isso, registrado em
um diário fictício, “sem” falácia (do ponto de vista da verdade ficcional). Não
há nenhum compromisso, ali, por parte do diarista fictício, em criar um “mundo
de imaginação”, embora esse mundo seja todo imaginação na factualidade fora da
ficção (proposta mesma das obras consideradas “realistas”).
Mais
definições:
→ A
originalidade é muito importante, não é bom que o diário seja, por exemplo,
“fotocopiado”;
→ Poder de
seleção; sensibilidade para abrir mão de excessos, do prescindível, como
mostram as seguintes citações:
“O mais que a mana me disse
não vai aqui para não encher papel nem tempo, mas era interessante. Vai só
isto, que jantou lá e Fidélia também, a convite de D. Carmo”. (idem, ibidem, p. 71)
“Sobre isto (que não tinha
sentido claro nem intenção) dissemos cousas que não importa escrever aqui”. (idem, ibidem, p. 119)
→ O diário
se aproxima (e faz quem dele tem acesso se aproximar) da vida privada das
pessoas;
→ O ato da escrita
do diário pressupõe um momento “bolha”;
→ Existe
uma relativa restrição guiada pela mínima cogitação da possibilidade de que
alguém o leia um dia, como fica claro nos seguintes exemplos:
Repito,
não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento. Algum dia,
quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e se eu morrer
de repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar dela que lhe não
contei o que já escrevi atrás. (idem,
ibidem,p. 112)
Lembrava-se,
sorrimos, e entramos a falar dos noivos. Eu disse bem de ambos, ela não disse
mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de ver casar a viúva,
como se fosse coisa condenável ou nova. Não tendo casado outra vez, pareceu-lhe
que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então (releve-me a doce mana, se
algum dia ler este papel), ou então padeceu agora tais ou quais remorsos de não
havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar demais de pessoa tão
excelente. (idem, ibidem,p. 116)
→ O diário
é uma espécie de espelho, em virtude da faculdade do auto-conhecimento;
→ O diário
serve também como modo de reflexão tanto de si quanto dos outros:
Explico
o texto de ontem. Não foi o medo que me levou a admirar o espírito de D.
Cesária, os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa. Já confessei
alguns dos seus merecimentos. A verdade, porém, é que o gosto de dizer mal não
se perde com elogios recebidos, e aquela dama, por mais que eu lhe ache os
dentes bonitos, não deixará de mos meter pelas costas, se for oportuno. Não;
não a elogiei para desarmá-la, mas para divertir-me, e o resto da noite não
passei mal. (idem, ibidem,pp.
120-121)
→ O diário,
geralmente, aborda assuntos banais reverenciados pelo puro prazer da escrita;
→ É
considerado um gênero, pelo senso comum, egoísta, ensimesmado, escrito por
pessoas anti-sociais e inter-relacionalmente
“perturbadas” por alguma questão;
Conselheiro
Aires, quanto a essa última definição, no entanto, prova, no seu mundo da
ficção, que isso não é verdade; raras vezes se mostrou anti-social; muito
embora “perturbado” por suas próprias divagações; certa vez desejou que Rita,
sua irmã, não o fosse visitar, mas isso é porque estava enfermo; no mais,
sempre mostrou-se um homem muito interativo com as pessoas ao seu redor.
→ É um
gênero que pode ser escrito por qualquer um embora não foram apenas quaisquer
pessoas que se dedicaram a ele;
→ O diário
pode ser encerrado com a morte do diarista (uma das possibilidades de
encerramento de um diário);
→ Quando
parar? Não sabemos se Conselheiro Aires morreu no dia seguinte à sua última
anotação, o texto não nos oferece essa informação. Mas, o fato é que ele
interrompeu a escrita do seu diário abruptamente logo após Fidélia, personagem
cuja história foi o ponto de partida do seu diário, deixou, definitivamente, o
Brasil rumo a Portugal com seu noivo (e irmão “postiço”) Tristão.
→ Geralmente, há um destaque ao começo e que,
também de maneira geral, está fundamentado num “momento crise”;
→ Pode ser que não haja mais o que ser escrito
no diário em processo, restando algumas alternativas como: destruição,
interrupção ou publicação literária.
No caso de
Aires, o que seria o “momento crise” foi o ócio mesmo; começou a escrever no
primeiro aniversário do seu regresso ao Rio de Janeiro, logo após sua
aposentadoria e, é claro, a necessidade de deixar sua vida registrada na
história face à morte iminente. Esse momento teve ainda como mola propulsora a
curiosidade acerca da vida de Fidélia (seu quase amor platônico) a partir do
primeiro encontro com ela no cemitério, quando ela prestava homenagens ao seu
falecido marido.
O primeiro
assunto relevante de Aires, além do seu regresso da Europa ao Brasil, foi
Fidélia, seguida da aposta que fez com sua irmã Rita, dizendo que ela voltaria
a se casar e, a princípio, ele pensou que ele mesmo é quem desposaria Fidélia,
uma amiga da família por quem ele nutria um “amor” unilateral. Como ela se
casara com Tristão e foram para Lisboa, ao que parece para nunca mais voltar,
pode ser que, por essa razão, ele tenha desistido de continuar escrevendo, uma
vez que sua principal matéria tinha se desfeito: sua vida cotidiana que tinha
como protagonista das suas observações a adorável Fidélia; tanto é que sua
última anotação mostra que ele ia adentrando à casa dos Aguiares, mas
retrocedeu a “pé ante pé” (idem, ibidem, p.
135), ou seja, a casa dos pais da jovem já não era mais foco do seu interesse.
Mais definições a partir da leitura de
Lejeune:
→ Não há
previsão de desfecho no diário íntimo; são raros, inclusive, os diários que
possuem desfecho, pois o mesmo sugere a própria morte de quem o escreve
(estaria Machado de Assis prevendo que aquele seria seu último romance?);
→ O diário
seria, portanto, o gênero da “escrita sem fim”;
→ Somente
tem um relativo fim os diários programados (diário de viagem, de férias etc.).
A auto-biografia também tem um fim, um final proposto;
→ Outro fim
possível é pelo fim do suporte, fim do caderno etc. Assim, o diário “digitado”
poderia render bilhares de páginas antes do que seria seu fim definitivo.
IV.2. Segunda seção de definições:
Roland
Barthes, em seu livro O rumor da língua,
no capítulo intitulado Deliberação,
também nos dá suporte para mais algumas definições de diário íntimo, como as que serão dispostas a seguir em forma de
paráfrases por mim elaboradas:
•
O diário é um depoimento
pessoal;
•
Escrever no diário é um
hábito vicioso, aparentemente volitivo. Mas, para quem sente prazer nesse
momento de intensa singularidade, pode tornar-se um hábito quase “fisiológico”;
•
É prazeroso, porém, a
princípio, não tem valor literário;
•
O diário enquanto estiver
restrito ao domínio íntimo não deve possuir compromisso algum com a ficção ou
com a literatura, mas pode pertencer a esta se inserido no domínio público;
•
Compromisso com a sinceridade:
dizer de mim e julgar:
Aires
amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste
tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres
para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se
podes; não podes. (idem, ibidem, p.
102)
•
A sinceridade, apesar do diário íntimo, na sua
origem, não ter nenhum compromisso com a ficção, poderia ser melhor alcançada
justamente em matéria de ficção.
Abaixo, indico
quais seriam as possíveis motivações para tornar um diário, na sua origem,
íntimo, numa obra de ficção, mesmo sem modificações:
* A busca daquilo que é peculiar ao
indivíduo;
* Registro histórico;
* Interesse pela própria vida ou pela vida
de quem mantém ou manteve um diário;
* Oficina de frases (o diário, nesse
sentido, possui forte lirismo meditativo, como nessa passagem do Memorial: “As teses escolares dedicam-se
a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa” (idem, ibidem, p. 100)).
As citações
seguintes são, para complementar essa apreciação de Memorial de Aires, um
conjunto que forma, pelo menos em partes, uma autêntica oficina de reflexões:
Apesar
de não ser dado a melancolias, nem achar que o ofício de banqueiro vá com tais
lástimas, separei-me dele com simpatia. Vim pela Rua da Princesa, pensando nele
e nela, sem me dar de um cão que, ouvindo os meus passos na rua, latia de
dentro de uma chácara. Não faltam cães atrás da gente, uns feios, outros
bonitos, e todos impertinentes. Perto da Rua do Catete, o latido ia diminuindo,
e então pareceu-me que me mandava este recado: "Meu amigo, não lhe importe
saber o motivo que me inspira este discurso; late-se como se morre, tudo é
ofício de cães, e o cão do casal Aguiar latia também outrora; agora esquece,
que é ofício de defunto. Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que
preferi atribuí-lo a algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro.
Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um
elefante que engolira um rouxinol. Creio que falavam da Alboni, grande e grossa
de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão filósofo, e o mérito
do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá dado algum dia o meu
cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com vozes
defuntas. (idem, ibidem, pp. 78 – 79)
Leia,
e leia também esta outra confissão que faço das suas qualidades de senhora e de
parenta. Talvez eu, se vivêssemos juntos, lhe descobrisse algum pequenino
defeito, ou ela em mim, mas assim separados é um gosto particular ver-nos.
Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de Barros certa resposta de
um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes ali um
pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor
ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquele penedo contíguo ao
mar, que batia nele com violência. A imagem era viva, e se não foi a própria
ouvida ao rei de África, era contudo verdadeira. (idem, ibidem, p. 112)
Aquele
drama de amor, que parece haver nascido da perfídia da serpente e da
desobediência do homem, ainda não deixou de dar enchentes a este mundo. Uma vez
ou outra algum poeta empresta-lhe a sua língua, entre as lágrimas dos
espectadores; só isso. O drama é de todos os dias e de todas as formas, e novo
como o sol, que também é velho. (idem,
ibidem, p. 120)
IV.3. – Últimas definições
Maurice
Blanchot em sua obra intitulada O livro
por vir, no capítulo O diário íntimo
e a narrativa, nos dá subsídios para mais definições ao gênero diário íntimo:
- O diário
é um mero relato, não pode ser uma narrativa, propriamente dita; o relato do
dia a dia não alcança a profundidade da narrativa verdadeiramente literária;
- As
entradas diárias, diz-se que ficam presas a datas, numa ordem cronológica; mas,
nada impede que o diário resgate lembranças de outras épocas:
Antigamente,
quando eu era menino, ouvia dizer que às crianças só se punham nomes de santos
ou santas. Mas Fidélia...? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher
pagã. Terá sido dado à filha do barão, como a forma feminina de Fidélio, em
homenagem a Beethoven? (idem, ibidem,
p. 31)
Na
Europa tinha assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira
vez que uma senhora pintava diante de mim. Fidélia dispôs-se e continuou. (idem, ibidem, p. 95)
- O diário
pode se aproximar do memorial (como já é o evidente caso do Memorial) e se aproxima muito da
autobiografia, o que só contribui para as interpretações críticas autobiografistas tão questionadas por alguns
pesquisadores;
- No diário
íntimo há a possibilidade de vários “eus”; muitos deles latentes no mundo real
concreto; como é o caso mesmo de Aires, o qual amava Fidélia e relatava isso em
seu diário, mas preferia ter a postura de um senil circunspecto e, contra as
próprias veleidades, apoiar a união entre ela e seu pretendente Tristão, com a
qual, efetivamente, se casara.
IV.4. – Reflexões quase
finais
α- O diário seria o discurso de um texto inacabado;
β- O diário não é, como a maioria das obras literárias, uma espécie
de “missão”;
γ- A ideia de gênero livre é sempre falsa. Com o diário não é
diferente, pois vimos uma série de características que lhe são próprias;
δ- Agradável de se escrever, decepcionante de se ler (isto “em tese”,
pelo menos para o seu autor):
“Antes de me deitar, reli o
que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final demasiado cético. A mana que me
perdoe”. (idem, ibidem, p. 112)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda há
muito para se discutir sobre a diaristicidade de Memorial de Aires, mas já podemos inferir que toda a
obra em questão é um diário perfeito, que lê-se como se o fizesse a um diário
de verdade e não a um produto da ficção. Essa impressão é resultado da maestria
do autor em penetrar as diversas consciências, assim como as nuances
impregnadas nas páginas diversas do cotidiano. Provavelmente, esse livro foi
produzido sob a certeza de Machado de Assis de que ele iria morrer em pouco
tempo, mas isso ninguém pode afirmar. É, sobretudo, uma prosa poética, embora
realista, cuja poesia emana da destreza da escrita de Machado, de suas
reflexões ao longo dos relatos. Os personagens são poucos, o cenário quase o
mesmo, o enredo, ou enredos, bastante simples, pois emulam a rotina do dia a dia;
mas, a profundidade psicológica com que Aires sonda sua própria mente, assim
como tenta perscrutar a de outros personagens é, definitivamente, convidativa e
cativante.
Prof. Me. Danillo
Macedo
REFERÊNCIAS
Ariès, Philippe - Duby, Georges - História
da Vida Privada: da Europa feudal à Renascença - Editora
Companhia das Letras, São Paulo, 1990, vol.2
ASSIS, Machado de. Memorial de
Aires. São Paulo: Escala, 2010.
BARTHES,
Roland. Deliberação. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mario
Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In:
______. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
EVEN-ZOHAR, I. Polysystem
Studies. In: ______. Poetics Today, vol. 11, 1, 1990. Disponível em
<http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>.
HEGEL, G. W. F. A poesia lírica.
In: ______. Cursos de Estética, vol. IV. Trad. Marco Aurélio
Werle, Oliver Tolle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2004.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária.
Coimbra: Armenio Amado, 1970.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Trad. Jovita M.
G. Noronha, Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.