segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A importância de fazer distinções

"Deveria ser possível dizer que o Irã é expansionista e terrorista sem que isso signifique concordar com a política de Trump”

O MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, tem uma dependência no Queens, o PS1 –poucos turistas, um ótimo café e boas exposições temáticas.
Estive lá três dias antes do assassinato de Qassim Suleimani e Abu Mehdi, em Bagdá, por um drone dos Estados Unidos. Queria ver a exposição Theater of Operations: The Gulf Wars 1991-2011 (Teatro de operações, as guerras do Golfo).
Lembremos. Houve, primeiro, a Guerra do Golfo, em 1991: uma coalizão (EUA, Kuait, Reino Unido, França, Egito e Arábia Saudita), que liberou o território do Kuait, que tinha sido invadido pelo Iraque, mas sem depor o (espantoso) ditador iraquiano, Saddam Hussein.
A Guerra do Iraque propriamente dita foi em 2003: EUA e Reino Unido invadiram o país e depuseram Saddam Hussein, que foi julgado e executado pelo novo governo iraquiano. A “justificativa” da intervenção foram supostos vínculos de Saddam com os terroristas da Al Qaeda e a suposta produção, pelo Iraque, de armas de destruição em massa. Para Saddam, os EUA queriam controlar o petróleo do Oriente Médio. O fato é que as justificativas anglo-americanas se baseavam em informações forjadas.
Durante a guerra de 1991, o sociólogo francês Jean Baudrillard escreveu alguns textos, reunidos sob o título La Guerre du Golfe N’a Pas Eu Lieu, (A Guerra do Golfo não aconteceu).
Primeiro, ele constatava que é difícil dar sentido a um evento inacabado. De fato, a tal guerra no Golfo, se é que começou em 1991, não acabou até hoje. A derrota iraquiana em 2003 foi adubo para o Estado Islâmico (com a guerra para destruí-lo), deixou incerto o destino dos curdos e produziu uma luta de facções e Estados (próximos e longínquos, como EUA e Rússia), que está viva hoje.
O título dos textos de Baudrillard (reproduzidos no catálogo da exposição) está confirmado hoje, no embate entre Trump e o Irã, que também aconteceu mais na mídia do que na realidade. O Irã declara que vingou Qassim Suleimani matando 80 soldados americanos –o que importa é que os iranianos acreditem. Trump declara que nenhum soldado americano se feriu. E foi o fim (temporário) da escaramuça.
Na exposição do PS1, muitas obras apenas dizem que as guerras estão erradas porque as crianças podem morrer. Engraçado, as crianças são as que mais brincam de guerra (na faixa de Gaza, nos anos 1990, me lembro de ser acolhido por meninos erguendo seu Kalashnikov de madeira e gritando “kill Israeli, kill”).
Em outras obras (não só iraquianas), ouve-se uma queixa nacionalista: Saddam era um bosta, mas era nosso bosta. O que os gringos tinham a ver com isso? Se eu caminho pelas ruas de São Paulo e vejo um refugiado qualquer batendo numa velhinha, não deveria reagir porque ele é estrangeiro? Ou porque eu sou estrangeiro?
Agradeço aos gringos (incluindo os brasileiros) pela intervenção na Europa, na Segunda Guerra Mundial. Agradeço também pela intervenção (atrasada) na Sérvia para proteger os bósnios. E acho espantoso que os “estrangeiros” não tenham intervindo em Ruanda, no norte da Nigéria, no sul do Sudão, nos momentos sanguinários das ditaduras latino-americanas etc.
Outro argumento implícito de muitos artistas era: tudo foi por causa do petróleo. Como diz o Evangelho (Mateus 4:4, Lucas 4:3, 4), não só de pão vive o homem: a razão cínica, que entende tudo em termos de interesses materiais, é ingênua, ela nunca enxerga as motivações menos óbvias –a começar, no caso, pelo enfrentamento (velho, de 1.400 anos) das duas grandes religiões missionárias, o islã e o cristianismo, ambas capazes e desejosas de guerras santas.
Saí da exposição me perguntando: por que parecemos preferir simplificações que enxergam o mundo em branco e preto? Deveria ser possível dizer, por exemplo, que o Irã é expansionista e terrorista sem que isso signifique concordar com a política de Trump.
Para onde foi nossa capacidade de fazer distinções?
Acho que a esquerda foi quem começou. Segundo meus pais, era possível e lógico ser antifascista sem ser comunista.
Essa inteligência sumiu com a geração deles. Quando voltará? Só sei que, para mim, militante de esquerda nos anos 1960, os liberais e os social-democratas eram todos “fascistas”.
Hoje, as direitas dão o troco: acham que só há um inimigo, o espectro comunista, que ronda pelo mundo, como se estivéssemos na época do manifesto de Marx.

Acima de quê?

"Quando nasceu a paixão nacionalista, no século 19, havia mentecaptos para afirmar que a nação tinha alma eterna e infalível”
Desde a campanha eleitoral de 2018, eu me pergunto qual é o sentido possível da divisa “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
“Deus acima de todos” só se entende se for completado assim: “...acima de todos os que acreditam nele”. Para os que não acreditam em Deus, Ele (ou Ela, se for mulher) não está acima de coisa alguma. Para os que acreditam num deus que não é o nosso, o deus acima de todos seria o deles, e, às vezes, os dois deuses pensam diferente.
O maior problema é que, mesmo que acreditemos todos no mesmo deus, nosso entendimento do que ele quer da gente é variado. A história nos presenteou com séculos de guerras pavorosas entre crentes do mesmo deus, cada um convencido de que o tal deus estava combatendo com ele. De fato, no caso, só Deus sabia de que lado estava (eu tendo a pensar que ele estivesse de folga).
Resumindo, para os crentes, a divisa é boa só sob a condição de que o governo que a adota acredita exatamente no mesmo deus deles. Para os não crentes, a divisa é ameaçadora, pois eles prefeririam que a autoridade do Estado fosse fundada na razão e na lei –não num deus que eles não reconhecem.
Mas vamos em frente. “Brasil acima de tudo” é mais estranho ainda. É uma retomada do primeiro verso do “Deutschlandlied”: “Deutschland über Alles”, Alemanha acima de tudo. As letras foram escritas em 1841, para lembrar que a urgência era a unificação da Alemanha (que era na época uma federação comercial de 35 monarquias e quatro cidades-Estado).
A primeira estrofe do canto se tornou o hino do nazismo, pois Hitler queria mesmo reunir todos os “alemães”, quer eles fossem austríacos ou vivessem como minorias, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Alsácia etc. (foi com esse pretexto que ele começou a invasão da Europa). Enfim, a estrofe é hoje proibida na Alemanha, pois se verificou que pôr a nação “acima de tudo” acaba autorizando qualquer turpitude.
Então, qual sentido tem para nós a divisa “Brasil acima de tudo”? Duvido que alguém queira invadir o Paraguai porque há 300 mil brasileiros por lá.
Já me explicaram que “Brasil acima de tudo” é um brado dos paraquedistas, inventado no fim dos anos 1960 e adotado oficialmente nos 1980. Tudo bem, mas pergunto: os paraquedistas se inspiraram no quê e em quem? Não foi no começo do hino nazista?
A referência explícita ao nazismo voltou intencionalmente na patacoada do ex-secretário especial da Cultura. Paradoxal e comicamente, na hora de anunciar uma nova cultura “nacional”, ele escolheu a trilha sonora preferida de Hitler (Wagner), em vez de, sei lá, Carlos Gomes ou Villa-Lobos.
Mas façamos de conta que “Brasil acima de tudo” seja apenas a expressão de um nacionalismo genérico. Faz sentido?
Só à condição de completar imediatamente: Brasil acima de tudo, “contanto que ele tenha razão”.
“Brasil acima de tudo”, aliás, lembra-me o livro de um fascista italiano que reuniu seus escritos dos anos 1930 sob o título: “L’Italia Ha Sempre Ragione”, a Itália tem sempre razão –frase bizarra hoje, e, na época, hilária.
Quando nasceu a paixão nacionalista, no século 19, havia mentecaptos para afirmar que a nação tinha alma eterna e infalível, mas, infelizmente, a nação só existe e se manifesta na história através de governos e povos concretos. E os governos e os povos são feitos de almas mortais –às vezes, tolas, outras vezes, sanguinárias.
Você perguntará: mas quem decide se o Brasil tem razão? Quem diz quando o Brasil está certo ou não?
Pois é, a resposta não está em nenhum livro de educação cívica. Quem decide é você, só você. Se errar, pelo menos será um erro seu, responsabilidade sua.
Em cada cidadão, a vontade e a capacidade de pensar e julgar está acima da nação. É difícil? Sim, mas durma com isso.
Se seu país amanhã decidir expulsar os judeus, como a Espanha em 1492, você dirá o quê? “Arriba, Espanha”? E se ele decidir prender os homossexuais, como Cuba desde os anos 1960, você dirá o quê? “Viva la revolución”? E se seu país torturar e matar os dissidentes às escondidas, como a ditadura militar brasileira, você vai dizer o quê? “Brasil acima de tudo”?
O brado nacionalista, em todas as épocas e em todos os lugares, não é diferente dos outros convites a aderir a uma coletividade, que seja o partido, a torcida, a Igreja ou a gangue: ele só serve como uma boa desculpa para não pensar com a cabeça que nos foi dada –por Deus ou por Darwin.

O futuro é libertário?

"Qual é a extensão da liberdade que ousamos nos permitir? E qual parte de nossa liberdade aceitamos sacrificar às necessidades da vida em sociedade?”


No fim dos anos 1960, quando imaginávamos que nossa revolta transformaria o mundo para melhor, meu pai dizia: “Cuidado, os extremos se tocam”, como se nós, “progressistas”, e os fascistas e congêneres, que combatíamos, tivéssemos algo em comum
Aquela observação irônica e irritante era a expressão de uma ideia que logo se imporia mundo afora. Fascismo e comunismo podiam servir aos interesses de classes sociais opostas, mas tinham algo em comum, algo que talvez fosse mais importante que suas diferenças: ambos aspiravam a ser totalitários, ou seja, a controlar completamente a vida dos cidadãos em nome de uma comunidade que era considerada mais importante do que os indivíduos.
Na origem dessa ideia: 1) a obviedade de que os regimes comunistas reais foram e eram pesadelos opressivos e assassinos; 2) décadas de pesquisa psicológica sobre a obediência burocrática que, no sistema “certo”, levara pessoas comuns a se transformar em torturadores, assassinos e cúmplices de genocídios.
No fim dos anos 1980 defendi minha tese de doutorado, dedicada a entender a origem de complacência e obediência num regime totalitário.
Para mim, e para muitos, a distinção entre esquerda e direita se tornava menos relevante do que a distinção entre os governos com práticas e sonhos totalitários e os governos que preferiam sonhar menos e deixar os indivíduos livres para viver a vida que lhes parecesse certa.
Depois de um século e meio em que a análise política perguntava em que pé estava a luta de classes, as questões urgentes das últimas décadas voltam a se parecer com as questões da aurora da modernidade: qual é a extensão da liberdade que ousamos nos permitir? E qual parte de nossa liberdade aceitamos sacrificar às necessidades da vida em sociedade?
As sensibilidades de direita ou de esquerda podem dar respostas diferentes, sobre desigualdades, redistribuição de riquezas, impostos etc. Mas, sensibilidades diferentes à parte, somos libertários: o inimigo comum é o Leviatã, o monstro que nós mesmos criamos, supondo que precisemos de um governo central e autoritário para nos proteger da desordem de nossa “selvageria”.
Para os filósofos, o Leviatã nos protegeria contra a selvageria social, que seria “natural”; para os psicanalistas, o Leviatã é alimentado pela tentativa de cada um se defender dos seus próprios desejos. Ou seja, há quem diga que, sem Estado forte, os homens se matariam reciprocamente, porque isso é o que os homens fazem “naturalmente”.
Mas eu tendo a pensar que o Leviatã surge para proibir de matar ou para reprimir o sexo casual, porque muitos têm uma tremenda vontade de matar e se enfiar numa suruba e não conseguem nem se autorizar, nem se conter.
Seja como for, a questão do dia é como eliminar o custo “inútil” do coletivo –”inútil”, digo, no sentido que não é necessário pagá-lo para que a vida em comum seja possível.
A tarefa não é simples. A vontade de regulamentar, proibir, reprimir vem do âmago de cada um e tem raízes no cristianismo desde Paulo de Tarso. Ainda recentemente, li um texto simplório em defesa da abstinência sexual dos adolescentes como política de Estado: o pressuposto insidioso era a ideia de que a moral seria a arte de proibir. Falso: a moral é a arte de permitir o máximo possível.
E se eu não concordar com os atos que meu vizinho se permite? Não tem problema: você nunca será obrigado a agir como seu vizinho. Para conter sua indignação, pense que é sempre o registro da inveja que nos faz definir a liberdade dos outros como libertinagem. Ninguém pode te obrigar a mudar de sexo. Mas ninguém pode te impedir. Ninguém pode te obrigar a se prostituir, mas ninguém pode te impedir. E por aí vai.
Cada um se permite o que ele consegue se permitir. Praticamos morais diferentes, mas temos um inimigo comum. Citando um grande conservador (Michael Oakeshott no livro sobre o racionalismo em política de 1962), inimigos comuns são aqueles para quem governar significa “transformar seu sonho particular numa maneira pública e obrigatória de viver”.
Os verdadeiros conservadores, aliás, são hoje os aliados dos libertários, pois eles recusam toda a engenharia social: a sociedade pode e sabe produzir suas mudanças sozinha, aos poucos, de baixo.
Um detalhe: defender nossa liberdade sempre significa defender a liberdade do vizinho como se fosse a nossa.

Pregar abstinência sexual é imoral

"Concordo com Bolsonaro, deve ser possível transar sem engravidar ninguém” 
“Os jovens de hoje são hedonistas, ou seja, só querem prazer e para já.”
Das páginas de jornais e revistas até ensaios sociológicos sisudos, “hedonista” se tornou um palavrão. Às vezes, aliás, a definição do hedonismo inclui sua condenação: por exemplo, ele seria a procura “excessiva” do prazer. “Excessiva”?
De fato, o hedonismo afirma que o prazer é o bem supremo da vida humana. Você discorda? Mas, se não for esse, qual deveria ser? O desprazer? O sofrimento? A renúncia? A frustração?
Talvez. Nossa cultura, além de tratar o prazer com desprezo, valoriza a capacidade de adiar as gratificações. Há uma série de pesquisas para documentar a “força de vontade” dos pimpolhos que não comem seu chocolate agora porque alguém lhes prometeu que, se eles esperarem, ganharão dois. Pergunta: os que comem o chocolate sem esperar são impulsivos ou são desconfiados? Por não acreditarem na promessa que lhes foi feita, não serão eles os mais sábios? Chocolate já. Por que aquele que sabe esperar seria “melhor”?
O cristianismo implantou nas nossas mentes uma sólida representação de punições e recompensas na vida após a morte: quem renuncia ao prazer aqui e agora receberá muito mais, depois. Ao contrário, será punido para sempre quem cedeu aos impulsos e procurou o prazer já.
Com isso, renunciar aos prazeres se tornou meritório. É da renúncia que esperamos milagres: se não como mais chocolate, minha mãe vai se curar (pois alguém reconhecerá o mérito de meu sacrifício).
Aqui um paradoxo: sem saber bem o que isso significaria, declamamos que queremos ser “felizes”, mas desprezamos os prazeres. Nosso pensamento moral é doente.
Nos últimos dias, uma incrível fileira de maluquices foi dita em defesa da abstinência sexual como maneira de evitar gravidez precoce. Detalhe: a moral não é a arte de proibir, isso está ao alcance de qualquer mentecapto animado por uma sanha missionária. A moral é a arte de ponderar e permitir tudo o que for possível. Nesse sentido, a proposta da ministra Damares é imoral.
Em outras palavras, se a gravidez precoce é indesejável, a questão não é como evitar que os adolescentes transem, mas como fazer que possam e saibam transar sem engravidar. Veja: educação sexual básica, recursos anticoncepcionais etc.
Agora, se alguém acha que as e os adolescentes não têm cabeça para decidir se querem transar, vamos discutir a lei que situa a idade do consentimento sexual aos 14 anos (lei que é da era Vargas, dos anos 1940).
E se alguém acha que, na adolescência ou não, nunca deveríamos transar sem a vontade de engravidar ou ao menos sem correr o risco de nos multiplicarmos, deixo que ele ou ela conversem com o presidente Bolsonaro, que, com toda razão, reverteu uma vasectomia para ter uma filha e, depois disso, voltou à vasectomia.
O desprezo pelo prazer começa a ser reconhecido como uma verdadeira patologia, sob o nome de hedonofobia, ou seja, medo do prazer. O sintoma é social e antigo.
O medo do prazer já se expressou pela mortificação da carne (jejuns ou açoite, você escolhe) que alguns “fiéis” se impunham para afastar a tentação do prazer. Mas, sobretudo, o medo do prazer se transforma em repressão. Não gosto de bloco (até porque nunca pego ninguém); em vez de me frustrar ficando em casa e invejando os outros, vou proibir os blocos. Ninguém pode se dar os prazeres que me apavoram!
Reprimir os outros constitui um alívio, diminui minha inveja e, de brinde, permite-me servir a uma causa “nobre”. Na adolescência, ninguém me tirava para dançar, agora vou impedir que os outros transem, e é uma causa nobre: proteger os jovens contra gravidez precoce.
Para aqueles que têm medo do prazer (e são uma maioria), os colegas terapeutas comportamentais têm sugestões interessantes.
Por exemplo, 1) faça uma lista das coisas e atividades que lhe dão prazer. Descubra assim que seus prazeres são diversos e refinados: a poesia de Billy Collins, o silêncio, uma média com pão quente, uma transa no carro, um romance para violino e orquestra”. Somos uma espécie diferenciada justamente porque inventamos uma variedade incrível de coisas que nos dão prazer.
2) Nunca faça uma lista de suas obrigações do dia (do supermercado às contas) sem acrescentar duas ou três coisas da lista dos prazeres possíveis, e considere que esses itens são tão urgentes quanto os outros.
Bom Carnaval.

Cinquenta anos hoje

"Os anarquistas pareciam ser os culpados ideais”
Era 12 de dezembro 1969, fim de tarde, em Genebra. Eu pensava nas férias, que logo começariam e que eu passaria em família, em Milão. Meu pai me ligou, de Milão, justamente, o que era raro. Ele me disse que uma bomba acabava de explodir no Banco Nacional da Agricultura, na Piazza Fontana. Havia mortos e feridos (16 e 88, respectivamente, saberíamos mais tarde).
Piazza Fontana, atrás do Duomo, era um lugar familiar para mim por causa das lojas de tecido Ghidoli, quase na frente do banco: na minha infância, os Ghidolis eram amigos de meus pais e eu amava perdidamente uma das irmãs (infelizmente, eu tinha dez anos, e ela, 20).
Enfim, quem faria aquilo? E por quê? Passaram-se mais de dez anos sem que a Justiça encontrasse alguma resposta na qual pudéssemos acreditar: dez anos de chumbo.
“Os anarquistas” pareciam ser os culpados ideais. Pietro Valpreda (dançarino, com cara de contracultura) e Giuseppe Pinelli (proletário ferroviário) foram presos. Valpreda foi linchado pela imprensa e levou anos para ser inocentado. Pinelli caiu (suicidou-se? foi jogado?) da janela do quarto andar, onde estava sendo interrogado.
Sobre a morte de Pinelli, Dario Fo (teatrólogo e hoje prêmio Nobel) escreveu a peça Morte Acidental de um Anarquista (1970), que era ótima, mas contribuiu a convencer a esquerda toda de que Pinelli tinha sido defenestrado pelo comissário Luigi Calabresi, que o interrogava.
E Calabresi foi assassinado por militantes da Lotta Continua, num atentado, em 1972 –muitos, na esquerda, pensaram que foi merecidamente. Em 2007, o filho de Luigi Calabresi, Mario (jornalista), publicou um livro lindo e triste sobre a mentira que matou seu pai (Spingendo la Notte Piú in Lá - Empurrando a Noite mais Adiante, da editora Mondadori).
Confuso? É dizer pouco. Segundo a Justiça italiana, só entre 1969 e 1975, houve 4.584 atentados, com centenas de mortos e feridos –vítimas a esmo de um conflito que ninguém entendia qual fosse e de atos cuja finalidade última permanecia oculta. Muitos militantes de direita e esquerda foram identificados e condenados por executarem os atentados, mas nenhum mandante e financiador.
Nota: se o propósito era desestabilizar o Estado e a sociedade italiana, um mandante de direita podia financiar executores de esquerda, e o inverso.
É relativamente fácil imaginar qual fosse a intenção de quem inventou os anos de chumbo: “tamponar” os efeitos políticos e culturais de 1968 e 1969, impedindo ou atrasando a invenção de uma social-democracia avançada”.
Os cidadãos quaisquer, entre tiros e bombas, eram vítimas de neofascistas de boteco que procuravam comprovar sua legitimidade cobrindo-se com o manto do obscurantismo religioso. Um conflito central daquela época foi ao redor da lei que permitiria o divórcio: a direita era contra, a esquerda, a favor –a lei foi aprovada pelos italianos em 1974.
Também os cidadãos foram vítimas de um número de coitados e perdidos, eternos “estudantes” à procura de um dogmatismo teórico fácil (à la Toni Negri) que os transformasse todos em Cesare Battistis.
Mas, atrás dos militantes de esquerda e direita, quem eram e o que queriam os mandantes dos anos de chumbo? A alternativa está entre 1) neofascistas querendo voltar atrás no tempo ou 2) um centro retrógrado e “igrejeiro”, decidido a não compartilhar os lucros do dito “milagre italiano”, dono do poder desde sempre, desejoso de aparecer como a única voz da razão entre uma esquerda e uma direita ambas malucas e assassinas.
Essa segunda teoria era a de Pier Paolo Pasolini, exposta no Corriere della Sera, no fim de 1974, num artigo que começava assim: “Eu sei quem são os culpados”. Meses depois, Pasolini foi trucidado na praia de Óstia –por um michê. Será?
É bom celebrar o aniversário de Piazza Fontana, hoje, no Brasil, porque a provocação é a ação política preferida por quem se propõe como solução e “salvação” autoritária contra uma suposta desordem.
Provocação, por exemplo, é invocar as manifestações no Chile para prometer um novo AI-5 aqui.
Mas, tudo bem. Por sorte nossa, no Brasil, a história tende a tomar ares de farsa. Em 1981, setores militares, insatisfeitos com a abertura democrática, foram plantar bombas no centro de convenções Riocentro. Uma bomba explodiu no colo do sargento que a transportava. De forma tragicômica, o SNI tentou culpar os subversivos de sempre, estes malditos comunistas”.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Panteão da Memória


“os boçais continuam capazes de tudo para evitar
encontrar seus próprios demônios”
(Contardo Calligaris)

Respeito as leis...
A lei do Cão...
Da Natureza...
Do coração...
Do legalista burguês...

Justiça humana não é justiça
Como o amor é de outro plano
Este termo: “justiça humana”
é um sofisma...
A toga brunida
A oratória polida
É só um falar distorcido
É o reforçar de um cinismo
Agonizar puritano
Com nada disto me iludo...

Não espero pela Força Nacional
Há muita segurança de fachada...
Muitos corpos jogados em jaulas
Muitas vidas desperdiçadas...
Quem teme a perda do corpo: este em muito é pobre
Quem teme a perda da alma, este é o verdadeiro nobre...
E em tudo é sábio...

Não sabem o que fazer com a subversão
Nem sabem o que são quando se olham no espelho...
Oscar Wilde, Flaubert, Graciliano ou Goulart...
Tantos outros gênios, de vários domínios...
Morreram de desgosto
Deixaram pedaços da alma pelo caminho...

Tantos escritores, tantas almas inquietas...
A mediocridade tem um fado:  
Um sonho ruim que procura esquecer...
E que a alma esquece da procura
E da porra toda que não valeu o verso...



Muitos gênios foram perseguidos...
Traídos...
Fodidos...
Nós lemos...
Seus corpos humanos jazidos...
Sabemos...
Nos vimos...
E vemos...
Sempre esculpidos
Seremos...
Nesta história sem glória...
Apesar da escória...
No panteão da Memória!



- Prof. Me. Danillo Macedo - 



Postagem em destaque

Ela e Ele

Declamação para o dia da poesia, TV UFG: https://www.youtube.com/watch?v=D1peN0HQtAE Acabei por achar sagrada a desordem do meu espíri...