segunda-feira, 29 de março de 2021

Crônica de uma indiazinha

 

MINHA LEITURA





XIX



Crônica de uma indiazinha



A pequena caiapó estava animada para conhecer uma das festas mais populares e tradicionais do Estado de Goiás, a Procissão do Fogaréu, realizada todos os anos na Cidade de Goiás, desde 1745, quando a cidade era ainda uma vila, a Vila Boa de Goiás. Quem não tem o hábito de participar da mesma, porém já ouviu falar pela televisão, revive, em partes, cada uma das etapas desta festa. Mais uma vez, os conflitos de cultura e identidade da pequenina caiapó: ela admirava estes tipos de festa, no entanto, ficava pensando em como seria reverenciar seus “santos” caiapós. 

Para ela, toda festa religiosa cristã parecia ser a comemoração de alguma coisa; contudo, o que, de fato, representaria aquela “comemoração”? Era o ano de 1783, estava à companhia da mucama que a tinha como sua própria filha. Caminhavam pelas ruas tortuosas e íngremes da futura capital do embrionário estado goiano, feitas de pedras “ladrilhadas” por escravos negros e indígenas. Por elas, iam centenas de Farricocos indumentados de túnicas: negras, brancas, azuis, vermelhas, representando os soldados romanos, herança de uma Europa medieva. 

Esta festa representa a prisão de Cristo, o qual seria conduzido pelos soldados romanos até o que entendiam como sendo o seu “julgamento” e cuja sentença, todos nós já sabemos, seria a crucificação. É dada ênfase à última ceia, já dispersa, aos verdugos que açoitaram Cristo e à sua “paixão”: a “paixão de Cristo”. Paixão que quer dizer sofrer, e Jesus sofreu pelos pecadores do mundo, no lugar deles, como holocausto vivo. Todo mundo conhece a essência desta história. Não obstante, também os amou; e eu atreveria um paralelo com o que diz Camões: “amor é fogo que arde sem se ver”, porque a paixão sofre, mas o amor suporta todo tipo de sofrimento e, voltando aos escritos sagrados da Bíblia, é como o que o Coríntios bíblico também sugere: “o amor tudo sofre” (mas, suporta este sofrimento). 

Jesus, pois, sofreu (a sua “paixão”); quase desistiu no Jardim do Getsêmani, ao sopé do Monte das Oliveiras, em Jerusalém, quando disse “pai afasta de mim este cálice”, momento cuja angústia lhe foi tão causticante que, segundo o Evangelho de Lucas: “seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até ao chão”. Porém, ele também amou o mundo e ao Pai, quando concluiu: “mas que seja feita a tua vontade” (amou quando decidiu que suportaria todo tipo de sofrimento). Sofreu e amou mais do que a própria dor: ao Pai celestial e aos homens, o que incluía os verdugos que o dilaceraram na cruz do monte Calvário. 

A indiazinha era uma verdadeira Alice ou um Pequeno Príncipe perscrutando o mundo e sondando seu próprio ser. Ela sentia vibrar uma energia metafísica. Começou a represar na garganta um choro de contrição profunda quando viu alguns penitentes flagelarem suas próprias costas com látegos, chicotes de corda ou couro; ritual que decidiram executar paralelamente à procissão. Eram mais comuns os chicotes feitos de corda com nós cegos nas pontas. O sangue escorria pelas costas dos flagelados enquanto as lágrimas interiores da pequena caiapó começavam a sair das janelinhas de seus negros olhos. 

Uma confusão de imagens e histórias vieram-lhe à cabeça: ela se lembrava de histórias contadas ao redor da fogueira e de coisas que ela própria via em sua aldeia, quando não estava em sua temporada à antiga Vila Boa de Goiás que, à sua época, já havia se tornado (desde o ano de 1748) uma capitania, a “Capitania de Goiás”. Indígenas e escravos também eram igualmente açoitados, contudo não havia neles “pecados” que justificassem os açoites; quando viu a imagem de Jesus carregando aquela cruz pesada, em outro momento da procissão, estampada num estandarte de linho, carregado por um fiel à parte, lembrou-se de que guerreiros do seu povo faziam coisas malucas semelhantes como enfiarem a mão em caixas cheias de marimbondos para se “fortalecerem”, acreditavam que com isso estavam se preparando para a luta contra seus inimigos; também recordara-se daqueles festivais em que muitos carregavam gigantescas toras de madeira, inclusive mulheres, para detido entretenimento, o qual também sustinha um viés bélico. Lembrara-se, ainda, que indígenas eram obrigados a carregar pedras e pedras, assim como vigas pesadas nas construções e nenhum deles o fazia para expiar alguém de alguma condenação. Quando cresceu e pôde amadurecer seus pensamentos, também foi capaz de se dar conta que muitos de seus parentes foram escravizados, como faziam com os negros trazidos à força da África, e eles só carregavam aquelas pedras pesadas para não morrerem à míngua, muito embora muitos tinham, exatamente, este destino. 

Também soube, anos mais tarde, que o Senhor Jesus, de verdade, há muitos séculos atrás, era homem e ao mesmo tempo Deus, segundo as concepções cristãs. E que se fez homem para sofrer pelos homens que eram apenas homens e também pecadores, para que Deus-Pai perdoasse-lhes os pecados, inclusive as atrocidades contra escravos e indígenas. Já o autoflagelo era uma tradição muito antiga, mas era praticada por poucos, pois o padre da capitania havia dito aos fieis que o Evangelho de Cristo já não via aquilo como algo útil, que o senhor Jesus já havia sofrido o bastante por todos eles, no lugar de todos eles, como eram imolados os cordeiros na época de Abraão; que aquilo, feito em público, o Evangelho chamava de “hipocrisia”.  A indiazinha caiapó, no entanto, começou a perceber, no seu pensamentinho de criança, que talvez ainda fizesse algum sentido se flagelar, “vai que Jesus não tinha sofrido o suficiente para o pai dele, o Deus de tudo, perdoar tanta maldade realizada pelos homens”. 

Fé? Também ouviu sobre esta palavra. O que haveria de ser a “fé”? Sabia que era algo parecido com o que significava esperança, que é quando a gente espera por alguma coisa muito boa que ainda não chegou, mas que vai chegar! Como aquilo que diziam que dela viria: a paz entre seu povo e o homem branco. Naquela noite, Jesus lhe apareceu em sonhos, disse a ela que não se preocupasse com a mistura das raças, que tudo tinha um propósito, que ela viveria à sombra da cruz e à sombra da lança, as quais, juntas, formariam a sua própria sombra. Acordou estupefata, pediu à sua mucama para levá-la à aldeia Maria I, onde estavam alguns dos seus parentes, pois queria comer beiju e tomar banho em uma das cachoeiras próximas. Ela tinha esse direito, afinal, tinha o sobrenome do governador: ela era Damiana da Cunha. 


By Danillo Macedo


Estou escrevendo uma coletânea de crônicas... 





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