sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Esterquilínio

 


Não me esforcei para determinar em fazer o que fiz e fazê-lo

Não foi por falta de dinheiro como Mário de Sá Carneiro

Converti-me nisto de cicuta ou cianeto

 

Na escrivaninha, somente livros

E uma substância letal

Pensei em tomá-la, mas certa vez vi uma barata estrebuchando no chão sob efeito desses entorpecentes entomológicos

Foi quase a paixão de uma epifania

Tal qual de G.H. com o pomo da barata e, não quis, enfim, ter um desfecho tão escatológico como o de Sá (ou o da barata)

 

O pai mantinha guardada uma FN Herstal calibre 7.65

O mesmo modelo usado por Gavrilo no assassinato de Franz Ferdinand e Sofia

Esta, sim, seria uma arma ideal

A um final digno de um moribundo de alma

 

Sêneca foi “suicidado”

Virginia Woolf se afogou (de propósito), enchendo o casaco de pedras e entrando num rio

Freud a salvaria, ou melhor, Lacan, pois Freud já estava morto

 

Eu teria, ao contrário, a morte digna de Hemingway e outros que o valham

 

Poderia cometer um crime passional, mas não sou desses que botam a culpa nos outros

 

A culpa era toda minha

Um coração condigno não pode embair-se com sentimentos quiméricos

 

Fui ao quarto de meu pai, pela manhã

Após tê-lo acompanhado até a saída

Sentei-me na cabeceira da cama (dele)

Chorei um choro seco

Pensando em tudo quanto poderíamos ter vivido

Abri o criado-mudo

Peguei a FN Herstal

Destravei-a

Coloquei a extremidade do cano contra o céu da boca

Levantei-me

Fiquei de frente para o espelho

Olhei-me nele por alguns segundos

E fiquei imaginando como seria meu cérebro espalhado pelo chão, pregado no espelho, na parede: uma cena de Hannibal

 

Refletir causa muita dor

Devanear é pensar sem rumo para se esquecer de qualquer coisa

Mas, a reflexão também dá rédeas à razão

Que criou uma corrente contra a exacerbação dos meus desejos

 

Excesso de encômios não equivale a demasiado amor

Senão a demasiado desejo

Isso pode ser bom ou ruim

Bom é fruir o gozo

 

Mas do lodo, fui Tântalo

De Orfeu, o grito oco

No limbo esquálido, fui Tarobá

 

Colecionamos frases do quanto não sabemos nada do amor...

 

Ela havia se entregue a um “amor” onfalópsico...

 

Crio amores neoplatônicos

E isso é coisa de bovarismo

Só que um bovarismo sem adultério

Ou sem o sexo hedonista do epicurismo

Isso é coisa que inventei...

 

Não precisei me matar

Eu já estava morto

 

Essas elucubrações em frente ao espelho

Fizeram-me voltar atrás

Elas próprias mataram aquele estouvado que eu chamava de “amor”

 

Que é isso de amor?

Que paira sobre o telhado aguado, mas não encontra pouso?

Que é isso de amor?

Que vive acorrentado pelos olhos, mas não deixa a luz acesa?

Que é isso de amor?

Que não sabe que horas são, mas lamenta por todos já terem ido embora?

Que é isso de amor?

 

Quis atravessar o espelho para alcançar o lado avesso de mim e limpar a sujeira por dentro

Mas não precisamos de espelho para tanto

Ele tenta, contumaz, nos proporcionar o que não vemos do lado de fora

Meus olhos não me veem face a face, não se veem

O espelho é só uma sombra que nos deforma

E nunca nos dá em reflexo precário o que realmente somos

Espelho da face são os olhos alheios

E ver a si mesmo por dentro vai além da física vulgar ou dos olhos dos outros

Vê-se pelo espelho do intelecto, da psique, do espírito

Este, por sua vez, reduziu-me a esterquilínio

Mas, das cinzas o metal precioso

O fogo só consome o que não é fogo e também o que é mais fraco que ele

Do esterquilínio vieram formas que não se decompõem

E, do esterquilínio, eu me recompus!



By Danillo Macedo




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