quinta-feira, 23 de agosto de 2018

ELA E ELE



Declamação para o dia da poesia, TV UFG: https://www.youtube.com/watch?v=D1peN0HQtAE

“Ora, é indecentemente quando é a um mau e de modo mau que se aquiesce, e decentemente quando é a um bom e de um modo bom. E é mau aquele amante popular, que ama o corpo mais que a alma; pois não é ele constante, por amar um objeto que também não é constante”.

- Platão -




Ele se sente atraído por ela como, por Vênus, Adônis
Ela por ele igualmente, mas não sucumbe às suas investidas
Ela é o escudo
Ele, a espada
Ele desbrava
Ela planta
Ele semeia
Ela cultiva
Ele incide
Ela germina
Ele sai para desbravar o mundo, derrubar muros e ferir o alimento
Ela, queda, entrelaça as coisas da vida num tecido mágico
Ele ama a noite mas por ser o dia
Ela ama o dia mas por ser a noite
Ele, o Sol
Ela, a Lua
Um persegue o outro na Eternidade
Como o ouroborus
Ou a escada de Jacob
Que passa pelos mesmos lugares
Porém, cada vez mais altos, em espiral
Nunca alcançou, todavia, a Lua, o Sol em sua plenitude
Assim como o Sol jamais ousou tocar a Lua em toda sua integridade
Eles se encontram precariamente no crepúsculo, quando o Sol, tenaz
Entrega-se ao seu destino
E também na alvorada, quando a Lua capitula-se à sua nova caminhada
Ele cava e alicerça
Ela ajunta e edifica
Ele é o caos
Ela, o recanto
Os dois, a afinação do Lírio que adormece, encanta e exulta
Ele ri e ela chora
Ele é rígido
Ela é suave
Ele dilata
Ela contrai
Ele discursa
Ela ausculta
Ele destrói
Ela conserta
Ele é o fogo
Ela, a água
O calor tem o poder diairético da seta
O frio tem o aconchego da aljava
E ambos, calor e frio, equilibram-se e geram a vida
Se o fogo mata completamente
A água restaura completamente
Como ele é o vinho
E, ela, a taça
Como ela se embriaga dele
Sendo ele embriagado por ela
Mas, ela o guarda
Ela retém
Ela cuida
Ele transborda o fluido licor de si mesmo
E viola em celeuma o aconchego quedo
Ele é o vento
Ela, a terra
Ele rechaça
Ela acolhe
Ele agride
Ela abraça
Ele é a sentinela que vigia à noite
Ela, o sono sereno que reestrutura o que foi ultrajado
Ele é a vida que mata
Ela é a morte que restaura
Eles encontram-se num instante entre dois nadas
Como génos e phénon
Como a morte constante do Sol que, a cada resfolegar do seu último sopro de vida, alimenta a Terra nos seus últimos movimentos de morte
Ele é a razão que se guia, mas cega aos outros
Ela, o sentimento que liberta
Ele tem a caneta pronta para garatujar
Ela, o papel em branco do qual se fará, o rabisco, existir
Ele, a cara
Ela, a coroa
Ambos, a moeda
Ele, o frontispício
Ela, a sinopse
Ele, páginas ímpares
Ela, páginas pares
Ambos, o livro completo
Como todo organismo janiforme
Ele foge
Ela procura
Ele encontra
Ela esconde
Ele espalha
Ela ajunta
Ele luta
Ela dá forças
Eles não se suportam
Eles se completam
Renascem da contradição
Superego ternário
Coïncidentia oppositorum

Não há equilíbrio absoluto
Há busca
Da busca, o movimento
O movimento busca o equilíbrio
Que gera contradições

A excelência se alimenta da fuligem do próprio barulho
Navega pelas fímbrias da crise e da aflição
E renasce do cúmulo e da inanição
Éclatement

Da demência da ruptura do controle que ameaça guiar-se a si mesmo até a aniquilação
Da loucura o recontrole do sapiens
Quanto mais contradições, mais movimento para descontradição
A homeostase do ser vivente
Quanto mais movimento, mais caminhos descobertos

Ela é o mistério
Ele, o invento
Ela, a Esfinge
Ele, o viajor
Ela é o velho
Ele, o novo
Ambos, o tempo
Do tempo as finitudes contraditórias
Das contradições, o novo
Do novo, a primeira contradição de ter-se, já, tornado velho

A comunhão dura o átimo impossível do eterno instante
Entre um tempo passado e um tempo futuro
No sempre ilusório presente
Num risco que nunca para a ser presente
Como o presente não existe
Por não haver um só instante capaz de não tornar-se, imediatamente, passado
Como o futuro igualmente não existe, pois nunca se encarna em algo verdadeiramente tangível
Estando sempre num eterno à frente
Talvez haja apenas passado, ao menos às coisas transitórias desde seus lugares particulares
Em heterogeneidade unitas multiplex
Mas, se o todo não se extingue, por renovar-se na morte e no renascimento axiológicos
Na homogeneidade do mesmo sistema
“Tudo” como “uno”
As mônadas de Leibniz
Então o tempo não existe: nem passado, nem futuro, nem presente
E o tempo do infinito é um eterno “agora”
O illud tempus
Igualmente complexo: forças antagônicas constituintes
E contraditório…

Mas, o tempo caminha sempre nesta esperança
De existir nalgum movimento duradouro
Cuja perenidade está apenas na agonizante insistência

Não há conciliação entre ele e ela
Embora existam pela existência um do outro
É duplo, como todas as forças que movimentam e se movimentam
É ternário como todas as bases
Tem ainda a quaternariedade concêntrica de um mandala
Como são todas as relações complexas dos ciclos completos
Como as estações ou a vida útil completa de um homem: infância, juventude, maturidade e senilidade
É, por fim, múltiplo como o Universo
E esse é seu paradoxo holístico

Um no outro são a mesma coisa na contradição
Um sozinho, é desequilíbrio
Outro sozinho, é desequilíbrio
Mas, a solidão é uma ilusão
É uma nova contradição
Pois só há solidão pela falta de algo
E só há falta de algo se algo inexiste
Algo existindo não pode faltar
Não faltando, não pode haver solidão
O que há é distância
Mas, ninguém pode medir o quão longe devem estar as coisas para que estejam realmente distantes
Estando as coisas sempre juntas
Nas ideias ou na matéria
Existem e se contradizem
É o paradoxo ontológico
Esta é a irônica essência de todas as coisas do mundo
De que tudo existe em tudo
Por tudo
Inseparáveis
Na ilusão da singularidade das coisas
Mas, se é ilusão não pode ser verdadeiro
Se não é verdadeiro, tampouco pode ser contradição de verdade
O que gera uma nova contradição
Isso de gerar nova contradição é coisa de escada em espiral
Isso de não ter conciliação é coisa de paradoxo

Ele morre tão completamente
Ela é o intransigente recomeço
Ambos, o reviver de cada instante
A transformação do mundo sempre novo
Regular, mas nunca o mesmo
O que é um novo paradoxo
Coisa de mundo novo
Regular é ser sempre o mesmo
A não ser que a regularidade esteja na regular mudança das coisas
Mas, não pode haver regularidade na mudança das coisas posto que havendo mudado foi irregular
Então, vem isso de relativismo que evoca o termo “depende”
Mas, isso de “depende” e “irregular” são nomes que damos a coisas que não sabemos explicar
E se a relatividade não existe, assim como a irregularidade, então temos nessa valsa ofídica mais um paradoxo
E, assim, tudo parece querer sair ao mesmo tempo em que junta-se no centro

Epistrophê
Métanoïa
Neguentropia
Vortex

É que uma coisa anula a outra
Para depois renascerem juntas
Sendo tudo a mesma coisa

O paradoxo da vida é que tudo tem dois lados
Sendo tudo de um lado só

Ele, se desperta no colo dela
Ela adormece em seus braços






- Danillo Macedo -  







quinta-feira, 28 de junho de 2018

Somos todos miseráveis







Existe uma linha que nos separa
Entre o eu e o tudo
O eu, massa informe
O tudo é a esperança da forma
Estamos verdadeiramente separados
De tudo que está fora de nós
Frequentemente, imaginamos possuir alguma coisa
Insistentemente, desejamos tudo
E, quando finalmente nos enganamos
Porque nos é declarada a posse
Um dinheiro trocado por algo
Dinheiro que inventamos
Uma palavra dada
Um registro feito
Regozijamo-nos
A ilusão das coisas fora de nós

O carro que achamos ter
A casa que achamos ter
O cargo que achamos ter
O tempo reivindica para si
Não sei se percebemos
Nada nos pertence
Antes de o último fio desatar a existência

Tentamos, lutamos, choramos, gritamos...
Mas que droga ser tudo em vão!
Pois tudo está fora de nós...
E tudo que está fora de nós só existe em forma de sonho
De vapor acústico
De uma sensação enganadora
Que se enrola nas entranhas do pensamento
E sopra as aparências das coisas

Somos todos miseráveis
E não possuímos, absolutamente, nada...
Peregrinos de uma estrada sinuosa
Desejamos ter, nos angustiamos
Fazemos tolices
Temos, nos angustiamos igualmente
Pois é natural a sensação de não ter, mesmo tendo...
Pois achamos que temos
E sempre nos enganamos
Por nós e pelos outros
Criamos expectativas sublimes
Fazemos falsas promessas
A nós, e aos outros...
Não porque não sabemos prometer
Senão porque todas as promessas são falsas!
Pois todas as posses são falsas!
Fora de nós...

Nasce uma grande deformação do ser 
O homem que mata para matar a angústia de não ter
Ainda não tendo, mata outra vez, até à própria morte...

Odiamos, guardamos rancor e sentimentos de vingança
Sobre aqueles que mentiram para nós
Mas, mentimos o tempo todo!
Para todos
Para nós...

Nada temos
Senão a esperança de uma alma, perfeita...
Enquanto houver angústia, haverá vida e esperança
Essa amante cruel que devora seus parceiros

A morte vem para todos
Iludidos e desiludidos
Nada temos...

Somos todos miseráveis... 




- Danillo Macedo - 

terça-feira, 3 de abril de 2018

Tudo me lembra você




Acabei por achar sagrada a desordem do meu espírito
- Arthur Rimbaud -


Caindo para o abismo ou caindo do céu
Não importa
É sempre como o brilho da estrela que morreu

Não posso discernir o certo do errado
Mas o falso do verdadeiro

É como a morte do filho que viveu 30 segundos
É como a ponte levada pela força das águas

É como queimar o bolo de aniversário faltando uma hora para a festa começar
É quando a festa acaba e não tem mais aniversário
É quando amanhece e tudo o que foi parece não precisar ter sido
É quando tudo deveria ter sido, mas nada realmente foi
É quando tudo poderia ter sido um pouco mais para esmaecer-se um pouco menos

Como tudo se esvai, meu Deus: o café que tomei, a água com que me lavei, o beijo que eu lhe roubei... 

É quando a gente pensa no que deveria ter dito, mas logo pega no sono e se esquece de tudo o que aconteceu
É quando a gente se lembra do que aconteceu e se esquece do que deveria ter dito

Alzheimer ao contrário é a febre do amor
São espinhos que cortam a pele
Como o Bem são frases riscadas nas águas

Como pode, meu Deus, ser tão difícil de esquecer-se de algo sem importância que se acabou e por isso mesmo não deveria ser importante, mas que não lho tendo feito inteiramente fica nesta agonia mnemônica como se importante fosse?

Água esconde o corpo nu e exposto
A mesma água a cujo abismo caía
Mas te soergui e me apaixonei por ti
E fomos um de corpo e alma
Até que o rio virou mar
E não mais te vi
A não ser cair de um céu inesperado
No brilho opala do que não mais existia
Como podia, pois, haver de brilhar, não sabia...

As águas refletem-na durante a noite
Quando desce no álgido vapor noturno
Cada vez que a água passa é um pouco de tudo que fica mais longe
Cada vez que anoitece é um pouco do nada imóvel na face da mesma água que passa

Tudo me lembra você
(O brilho vivo da estrela que morreu)
Todas as noites eu acho que alguma estrela vai cair e te trazer de volta
Até que volta a ser dia e na água só vejo o mesmo rosto abatido
Do céu só cai esta chuva fininha
Recosto-me no travesseiro
Abraço o cobertor como se fosse o teu corpo
Sem saber como este brilho do que morreu também há de apagar-se um dia
No cerrar peremptório dos olhos fatigados

Danillo Macedo 



O LETES


Trad: Ivan Junqueira

de Charles Baudelaire


Vem ao meu peito, ó surda alma ferina,
Tigre adorado, de ares indolentes,
Quero aos meus dedos mergulhar frementes
Na áspera lã de tua espessa crina;

Em tuas saias sepultar bem junto
De teu perfume a fronte dolorida,
E respirar, como uma flor ferida,
O suave odor de meu amor defunto.

Quero dormir o tempo que me sobre!
Num sono que ao da morte se confunde
Que o meu carinho sem remorso inunde
Teu corpo luzidio como o cobre.

Para engolir-me a lágrima que escorre
O abismo de teu leito nada iguala;
O esquecimento por teus lábios fala
E a água do Letes nos teus lábios corre.

O meu destino, agora meu delírio,
Hei de seguir como um predestinado;
Mártir submisso, ingênuo condenado,
Cujo fervor atiça o seu martírio,

Sugarei, afogando o ódio malsão,
Do mágico nepentes o conteúdo
Nos bicos desse colo pontiagudo,
Onde jamais pulsou um coração.


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Ela e Ele

Declamação para o dia da poesia, TV UFG: https://www.youtube.com/watch?v=D1peN0HQtAE Acabei por achar sagrada a desordem do meu espíri...