quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Errar


Errar é fazer algo que não é aquilo que deveria ser feito. É fazer algo que não está na forma mais adequada para quem diz qual a forma adequada.
Mas, se a minha forma não for a forma que mais agrada a quem guarda a forma que foi estabelecida, minha forma está então rejeitada.
Mas, se a minha forma for a melhor forma, que não agrada a quem guarda a forma que foi estabelecida, porque essa forma não está ao seu alcance.
Errei! Qual é então o meu melhor ato, agora? Qual é a minha melhor atitude? Devo eu reconhecer o meu erro, ou preservar a minha forma para o local e o dia que ela for a forma de quem estabelece a forma?
Ainda resta esperar que meu irmão cuide para que eu possa preservar a minha forma e compor com ele a forma que seria a forma que demonstraria que somos dignos da vida, segundo a forma, devo dizer, que Deus nos confiou!


Poema em prosa do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 


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terça-feira, 15 de novembro de 2016

O homem comum e o incomum



Um homem tem certas obrigações que lhes são impostas pela condição de sê-lo. Um homem deve, entre muitas outras coisas, trabalhar, andar vestido, cuidar de um certo mundo que o cerque. Todos os humanos de um modo mais geral possível, sempre estão envolvidos nesse tipo de atividade rotineira que, numa síntese ou numa generalização, os iguala. Pode-se dizer, então, que, em largas visões, os homens são todos iguais, ou melhor ainda, os humanos são todos iguais.
Numa olhada, digamos assim, mais aproximada, não muito, somente o suficiente, se perceberá uma distinção destes em algumas categorias genéricas, do tipo: homem e mulher, criança e adultos. Aproximando-se um pouco mais, pode-se observar outras categorias, aquelas distintas por preconceitos, do tipo: mais ricos e mais pobres, mais brancos e menos brancos. Mais próximo ainda, ver-se-á outras categorias de gente que se diferencia pela situação social em que se encontra, do tipo: se está de branco é da área de biológicas, se está de terno ou é advogado ou é executivo e sua variantes. Aproximando-se mais ainda, ver-se-á distinções do tipo mais bonito, mais feio, careca, gordo, magro, etc.
Nesse estágio de observação, o genérico deixa de existir, a partir desse ponto, todos são distintos de alguma maneira. Porém, esses se desnivelam por algo que não pode ser visto, pela atitude que tem em relação aos outros: alguns são capazes de ver mais além do óbvio e outros, mesmo esforçando-se, têm muita dificuldade para ver certas diferenças.
Observando uma certa categoria de gente, que não chega a ser uma categoria, mas é um estado de alma, percebe-se que a distinção entre essas duas pessoas impossibilita ou nega a existência de um indivíduo capaz de ser as duas coisas: o intelectual incomum e o intelectual comum ou não-intelectual.
O primeiro não tem outro amor que a sua própria mente. Não ama se não for por absoluto espaço vazio. Ele escolhe aquilo que melhor se encaixa na sua existência de intelectual convicto. Nada além de uma existência sem qualquer outro objetivo que marcar sua presença no meio que ele vive, sem a pretensão de ser imediatamente reconhecido, mas profundamente respeitado, tem importância. Esse, certamente, ganhará os limites do que pretende ser e o será do modo mais lindo possível. Ele será vencedor.
O homem que não é incomum, que é alguma coisa, mas a executa de modo não apaixonado, é um monte de coisinhas. Ele é o pai do fulano, filho de beltrano, etc. Ele é um dentre tantos médicos, enfermeiros, professores, atores, artistas, donas de casa, homem do lar, etc. Importantes, mas que não permite ao ser aquilo que não for de imediato o mais útil. O comum é comum. Ser comum não permite ser incomum.
Para ser muito incomum deve-se, portanto, ser um ser de natureza incomum. Cabe uma certa máxima, talvez preconceituosa, que classifica as pessoas segundo uma certa distinção mental de origem evolutiva, ou seja, a classificação de serem distintas em mais inteligentes e menos inteligentes. Daí, se uma pessoa inteligente/evoluída resolve ser dedicada, muito dedicada: ela se inventa intelectual/incomum.
O intelectual, porém, não deve ter a pretensão de ser comum. O intelectual é absolutamente intragável, não visível, não pode ser pai ou mãe, dedicação não pode ser dividida. O intelectual não pode ter medo de ser discriminado; a discriminação é a sua arma mais poderosa. Ele vive e existe porque é muito estranho, se não o for não poderá ser intelectual. Existe um abismo intransponível entre o comum e o incomum.
O intelectual não se zanga com os não intelectuais, com as suas limitações e classificações. Ele só classifica depois de analisar muito. Ele não precisa do mundo porque o seu mundo, ele carrega na cabeça. Ele vive enquanto puder ser apenas aquilo que quer ser, e só. Ele raramente quer aquilo que os comuns mais querem: a matéria em grandes quantidades. Ele se satisfaz em não ver nada que não lhe interessa, mas é capaz de permanecer olhando a mesma coisa durante anos. É por isso que ele não pode ser comum, não pode ter amigos do grupo comum sem ser estranho entre eles, não pode ter prazeres imediatos em larga escala, ele se contenta e fica feliz com um pouco desde que seja de profunda qualidade.
Comum a gente não precisa falar, eles estão aos montes e são muitas e muitas vezes praticamente desprezíveis (em sentido figurado), o incomum acredita na vida e na possibilidade de transformação da vida: é por isso que sempre vive e vive para sempre.

Poema em prosa do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 

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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

QUIMERAS: MORRER



Vi um poeta que aos berros declamava,
Declamou que a dor de estar vivo,
Somente poderia ser acalmada
Pela glória da caminhada para a morte.

Ele descrevia o mundo. Gritava alto!
Ele bradava em prantos.
Oferecia amor.
Sem mais pesar e sem tristeza, oferecia
A sua alma, que julgava desgarrada para que,
Acalmada a morte ficava,
Amar virasse hábito de todos os dias.

Ouve-se todos os dias,
Quantas vezes repetia.
— Olhem a caminhada generosa das cruzadas repetidas.

Ouve-se todos os dias:
—  Que mundo!
Ouve-se todos os dias:
—  Que mundo!

Repitas, então, se es capaz:
— O mundo caminha, implacável, e não será jamais impedido.

Caia quantos Napoleão e Hitler existirem ...
Também eles são só partes da caminhada.

Queria não estar embolado na parte vil.
Queria estar do lado que não é corrompido.
Queria estar do lado de lá, do outro lado.
Queria cantar a glória e não a dor.

Lá vai o mundo, imponderável.
Lá vai o mundo, incorruptível.
Sob o desígnio de quem criou.
— Não há razão para temer!

Oh, Anjo Augustus!
Descreva esta última quimera.
Que pantera, que nada!
Por que, se posso ver, tenho que viver?
Por que, se já sei que nada serei, tenho que viver?
Por que estou preso a este lastimável e faminto corpo?
— Deste modo sou presa fácil!

Não importa, nada importa.
Se em mil faces o mal se disfarça.
Para cada milhão de demônios vivos,
Basta um anjo encarnado ou um poeta humilhado,
Para que de novo o mundo se redima.

A cada passo concluído,
A cada fogo apagado,
Mais uma página virada do projeto infinito que o poeta ousou tentar descrever.


Poema do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 

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domingo, 6 de novembro de 2016

Vênus

       
        

Olhai os olhos das pombas-trocazes
Tais quais lábios cobiçados pelo Âmbar
Os crisólitos, crisóprasos, nácar
As calcedônias e tigres vorazes

Nem mesmo os onixes ou as ortósias
Jaspes, turquesas, jacintos, berilos
Até os carbúnculos trazidos do Eufrates
Ou mesmo os rubis trazidos do Nilo

Nada é igual à su’alma e sorriso
Seu amor, por quem será protegido?
Ébano tenaz, diamante mirífico
           
Sábia, sensível, coração prolífico
O ouro não compra o seu pundonor
Nem jades, opalas... Deusa do amor!

Danillo Macedo



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Flor e a Náusea



Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


(De  Carlos Drummond de Andrade, da antologia poética de 1962)

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