quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Mito


Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.


Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
talvez a linha do busto,
da perna, talvez do ombro.


Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.


Mas Fulana vai se rindo…
Vejam Fulana dançando.
No esporte ela está sozinha
No bar, quão acompanhada.


E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.


E sequer nos compreendemos.
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres.


Menos eu… que de orgulhoso
me basto pensando nela.
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.


Amor tão disparatado.
Desbaratado é que é…
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.


Mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia
e não gritar: Vem, Fulana!


Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo


tal como é ou deve ser:
branca, intata, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.


Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
o meu se punge… Pois sim.


Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate… Assim não.


Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?


Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe…
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?


Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.


Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)


E eu insonte, pervagando
em ruas de peixe e lágrima.
Aos operários: a vistes?
Não, dizem os operários.


Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não.


Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.


E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede: e Fulana


talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;


talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;


talvez cruze a perna e beba,
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.


Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.


Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!


Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,


já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana.


E Fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.


E Fulana correrá
(nem se cobriu: vai chispando)
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é: socorro! e deus.


Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.


E daí não sou criança.
Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.


Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila…
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.


Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.


Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,


desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.


Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;


Que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.


Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?


Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.


E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.


E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A Lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.


E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto,
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.


E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos… que mais queremos?


E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.


(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)


(De  Carlos Drummond de Andrade, da antologia poética de 1962)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Uma carniça

De Charles Baudelaire
Tradução de Ivan Junqueira.


Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

- Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!


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